As mulheres e o cante alentejano: processos, práticas e imaginários futuros

O processo de institucionalização dos grupos corais masculinos como representações da cultura expressiva alentejana, marginalizou as mulheres da prática formal do canto, mas não as impediu de cantar. Na sequência do contexto revolucionário de 1974 surgiu o primeiro grupo coral feminino, mas foi a partir da década de 1990 que as mulheres conquistaram o espaço público (Cabeça e Santos, 2010). A partir de uma etnografia extensiva e intensiva realizada na raia do Baixo Alentejo, entrelaçada com fontes documentais e bibliográficas trago ao debate a “cultura popular” como construção social em permanente actualização, para questionar os processos que atribuem visibilidade e invisibilidade a práticas musicais, tomando por eixo central a acção das mulheres na preservação do cante alentejano.

(…) eu ouvia sempre com muito agrado o canto das ceifeiras de Serpa, pela madrugada. Na verdade não sei de coisa mais bela no seu género. As ceifeiras formavam rancho, juntando-se num ponto da vila, às vezes no lado oposto àquele para onde tinham de seguir e, enquanto atravessavam a vila, iam sempre a cantar. Uma fazia alto, geralmente a que cantava melhor, e as restantes, distribuindo as vozes, faziam o coro. Ninguém ensinou as ceifeiras a cantar, mas o certo é que o seu canto tem muita arte. Num outro país que não fosse Portugal dominado pelo fascismo, o canto das ceifeiras de Serpa ter-se-ia tornado conhecido por todo o país e por muitos pontos do mundo (Francisco Miguel, Uma vida na Revolução, 1977: 27).

A noção de “cultura popular” conceptualizada no âmbito dos estudos folclóricos do século XIX, representa na actualidade o resultado dinâmico da intersecção de vários processos de construção social que a transformaram numa categoria analítica, ideológica, política, simbólica e social. Como nos recorda Jacques Revel (1989: 47) a cultura das elites moldou a “cultura popular” que melhor se ajustava ao contexto político de cada época, com o propósito de não a negar, mas de mostrar as relações estratégicas entre os atores sociais que agem por detrás da constituição das identidades culturais.

(…) A cultura popular é rebelde em defesa do costume (…) contra as intromissões das elites e do clero (…) consolida os costumes que servem os interesses de uma classe subalternizada (…) não era fatalista, antes oferecia consolo e defensas para o curso de vidas totalmente determinadas e restringidas (Thompson, 1979: 50).

(…) a cultura popular teve de ser censurada para passar a ser estudada e tornar-se objecto de interesse (…) o prazer experimentado pela auréola “popular”, que cobre melodias inocentes está precisamente na base de uma concepção elitista da cultura (Certeau e Julia, 1989: 53).

(…)  nação deveria possuir um passado (…) comum, (…) uma cultura popular nacional, e coube aos etnógrafos e eruditos locais a fixação desses requisitos, numa versão autorizada e intemporal do povo enquanto essência da nação (Leal, 2000: 18).

Durante a ditadura portuguesa [1933-1974] a ofensiva moralizadora da Igreja e do Estado conduziu a um vasto processo de disciplinação e doutrinação pelo folclore, como instrumento funcional de coação ideológica e “domesticação” do camponês, detentor das marcas singulares da identidade nacional. A partir de 1933 o Estado Novo controlou todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações politicas, sociais e culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. A organização corporativa e a diversidade dos seus organismos, primários e intermédios, serviram como instrumentos centrais de doutrinação ideológica, vigilância política e padronização de comportamentos quotidianos, no trabalho e no lazer, como aparelho central do controlo totalizante da sociedade portuguesa. A “cultura popular” como essência da nacionalidade, e a propaganda como meio eficaz à difusão da retórica nacionalista envolveram um conjunto de actores sociais, instituições e organismos corporativos fundamentais à difusão do ideário do regime. A partir da década de 1940 estabeleceu-se uma relação de dominação com os ranchos folclóricos através das Casas do Povo, na selecção de repertórios e trajes, e no controlo dos seus elementos por parte de delegados da FNAT, que moldaram os grupos corais masculinos alentejanos à forma que hoje conhecemos.

Organismos de doutrinação pelo Folclore

  • Casas do Povo, 1933.
  • Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), 1933; Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) a partir de 1945.
  • Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) (1935-1974).
  • Programas da Emissora Nacional: Alegria no Trabalho” (FNAT), e “Serão para Trabalhadores” (1941-1974).
  • Junta Central das Casas do Povo (1945-1974.
  • Gabinete de Etnografia da FNAT,
  • Mensário da Casa do Povo (1946-1971).

A “Alegria” como construção ideológica enquadrada na doutrina corporativista do Estado Novo, encontrava nos programas da Emissora Nacional “Alegria no Trabalho” e “Serão para Trabalhadores” um poderoso meio de difusão da ideologia fascista, por meio de sessões de propaganda política da União Nacional e do entretenimento. Segundo o seu mentor, António Ferro, “toda a alegria é assim possível, mais ainda necessária, desde que atrás dessa alegria exista uma doutrina séria, uma finalidade a atingir” (Ferro cit. em Moreira, 2012: 97). Neste contexto, a “cultura popular” devia ser comemorada através de festivais de folclore, concursos de cantares e espectáculos direccionados “para o embelezamento de um país visto como uma realidade de natureza cénica” (Leal, 2000: 58). O primeiro espectáculo de cantares alentejanos foi organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo) a 22 de Março de 1937 no Teatro São Luís, em Lisboa, para as elites da capital, e contou com a presença do Ministro da Educação Nacional e do director da Emissora Nacional. No sarau actuaram os Ranchos de Cantadores de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). A Casa do Alentejo teve sempre um papel relevante na inscrição da “província nas políticas do Estado português, e na construção de um imaginário dos usos e costumes do ‘ser português”, como bem assinalou a etnomusicóloga Maria do Rosário Pestana (2014: 23).

Foto do Sarau publicada no Diário do Alentejo, de 25 de Março de 1937.

Troféu oferecido aos grupos participantes, 1937.

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A institucionalização dos grupos masculinos marginalizou as mulheres do cante formal, e um conjunto de traços associados a esta prática colectiva desapareceram, nomeadamente os grupos mistos, o acompanhamento com instrumentos musicais (viola campaniça, harmónio e pandeiro) e o baile. José Alberto Sardinha (2001) diz-nos que não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar, e que os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar. Segundo este autor “a polifonia tradicional do canto alentejano só tinha uma regra fixa no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto” (2001: 29). As vozes femininas estavam ainda presentes na recolha realizada pelo folclorista Armando Leça junto de ranchos do Baixo Alentejo (1939-1940). As gravações cumpriam uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade (1140) e o terceiro da Restauração (1640). O registo em fita magnética ficou a cargo da Emissora Nacional, mas a edição discográfica não chegou a realizar-se, devendo-se ao estudo de Maria do Rosário Pestana (2014) a recuperação do espólio e gravações de Armando Leça, importante contributo tanto para as comunida­des de origem, como para músicos, estudiosos e público em geral.

Rancho Misto de Vila Verde de Ficalho que se apresentou a 30 de Novembro de 1940 na conferência “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, proferida por Armando Leça no Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), em Lisboa.

As vozes das mulheres conquistam o espaço público após a Revolução de Abril de 1974, com os grupos corais a alargarem os espaços de actuação a comícios e manifestações dos trabalhadores. No Alentejo formaram-se novos agrupamentos associados a Unidades Colectivas de Produção e surgiu o primeiro grupo coral feminino “Flores de Ervidel” em 1979 no contexto da Reforma Agrária. Ao ocuparem as terras e organizarem-se em unidades colectivas de produção homens e mulheres envolveram-se pela primeira vez na vida social e política das suas vilas e aldeias, e criaram novas cantigas que correspondiam ao sentimento de esperança que cimentava a Revolução de Abril. Com o apoio das autarquias os grupos criaram-se novos modelos de espectáculos – os Encontros de Grupos Corais – que substituíram os antigos concursos de Cantares Alentejanos organizados pelo SNI.

A partir da década de 80, com a destruição da Reforma Agrária e a implementação da política agrícola europeia, abandonaram-se as cantigas de intervenção social. No Alentejo e na Diáspora os grupos cantavam a terra, e reassumiam os modelos de “autenticidade” ditos tradicionais. Os repertórios cristalizaram-se a favor da revitalização da performance, por meio de trajes que remontam a “uma espécie de universo mítico de enunciação”. Assistiu-se a um processo de “re-folclorização” desenvolvido por autarquias e outras instituições de âmbito local e nacional, mediado por estudiosos e promotores locais. A re-folclorização trespassou as fronteiras da ruralidade e transformou-se num fenómeno urbano, com o número de grupos a aumentarem, e as mulheres a cooperarem activamente, animadas de um forte sentido lúdico e participativo. Em 1998 o inquérito realizado pelo Instituto de Etnomusicologia aos grupos de música tradicional dava conta da existência de 10 grupos femininos num total de 164 grupos de cante alentejano. Em 2013 o inquérito realizado pela Universidade de Aveiro aos grupos corais amadores registou a existência de 42 grupos corais femininos alentejanos. Em 2019, segundo o registo da Casa do Cante de Serpa existem 54 grupos femininos e 21 mistos. A formação de novos grupos, femininos e mistos deveu-se ao impacto que a candidatura e inscrição do Cante na lista representativa da UNESCO teve nas comunidades. A inscrição do Cante aumentou a auto-estima e o orgulho das pessoas envolvidas neste modo de expressão, como testemunha Leonor Burgos (Barrancos, 1947), coordenadora do grupo coral “Vozes de Barrancos” criado em Janeiro de 2015, por 18 mulheres com idades compreendidas entre os 54 e 78 anos.

(…) O reconhecimento do Cante a Património da Humanidade também teve muita influência, porque Barrancos sempre cantou, havia aqueles grupos que cantavam tão bem e agora não há ninguém a cantar, quando sempre houve aqui a tradição de cantar espanhol e alentejano. E foi também por isso que eu me lembrei disto, porque temos de continuar e temos de o manter. (…) Eu sempre cantei, na minha casa se cantava muito quando eu era nova e aprendi, aprendi, e a vontade de cantar foi sempre muita (Leonor Burgos, Barrancos, 27. 04. 2015).

Grupo coral feminino “Vozes de Barrancos” com a Drª. Isabel Sabino, madrinha do grupo e vereadora da cultura da CMB em 2015.

As mulheres Barranquenhas

(autoria do grupo)

(…)

Nós mulheres barranquenhas

Também sabemos cantar,

Agora com mais idade,

Temos um grupo coral.

 

Temos um grupo coral,

Foi esse o nosso destino

Em Barrancos nunca houve,

Um grupo tão feminino.

 (…)

A participação das mulheres transcende a prática do canto como actividade lúdica e criativa, no desempenho de tarefas organizativas e de divulgação dos grupos dentro e fora das suas localidades, apoiadas em redes informais tecidas nas comunidades. Das suas actividades destaco a organização anual de Encontros de Grupos Corais destinados a festejarem o aniversário dos grupos. Do conjunto de Encontros observados realço o de Vila Verde de Ficalho, organizado pelo grupo coral feminino “Flores do Chança”, formado em 2008 por vinte e uma mulheres, com idades compreendidas entre os 35 e os 80 anos de idade, que segundo a sua coordenadora Margarida Castelhano, “começou por brincadeira, mas o povo gostou tanto que passou a ser sério”. Treze das cantadeiras são desempregadas de longa duração e sete estão reformadas. Nas suas actividades quotidianas desdobram-se em tarefas domésticas, no apoio aos filhos e netos, em trabalhos precários e na prática do Canto, com ensaios semanais e espectáculos aos fins-de-semana. Para além dos convites para actuarem noutras localidades, em função das redes construídas ao longo do tempo, participam em todas as festas da vila, cantando e angariando fundos por meio de quermesses. A organização do Encontro depende do trabalho voluntário destas mulheres, que procuram os apoios necessários à sua concretização junto da Câmara Municipal de Serpa, Junta de Freguesia de Ficalho e da Caixa de Crédito Agrícola. Os grupos participantes são convidados com meses de antecedência, segundo uma lógica de reciprocidade. Isto significa um sistema de trocas entre iguais, em que a obrigação de retribuir é imperativa, fortalecendo-se na troca as relações sociais estabelecidas. Feitas as compras necessárias ao jantar oferecido no final do Encontro aos participantes e convidados e contratada uma vizinha como cozinheira, as cantadeiras asseguram a organização da cozinha, o arranjo da sala multiusos cedida pela Junta de Freguesia, as ofertas e recepção aos grupos convidados que acompanham no desfile pelas ruas da vila. A liderança destas mulheres provém da intensidade do compromisso com as comunidades, de superarem desafios e imaginarem futuros, para além das limitações e das dificuldades da vida quotidiana. O “espírito empreendedor” não se inscreve na lógica empresarial capitalista, antes numa economia alternativa de trocas simbólicas, baseada na cooperação, na interdependência e na reciprocidade, que como afirmou Polanyi, “são mais necessárias à existência humana do que os princípios de mercado que desenraízam e desumanizam” (Polanyi, cit. Eriksen 2016: 206). Neste sentido, os Encontros não são espectáculos musicais direccionados para o turismo, antes celebrações de fruição local que não dissociam o canto de uma cultura incorporada, como valor de pertença a um “lugar social”, com significado identitário, relacional e histórico, pertencente a um mundo global.

Jantar convívio no final do Encontro, 2015.

Grupo coral “Flores do Chança”, 2015.

A ideia de mundialização do Cante veio criar expectativas diferenciadas nos actores sociais envolvidos no processo de patrimonialização. Os promotores direccionam-se para a internacionalização do património cultural português, e a oportunidade de interacção do Cante com outras tradições polifónicas do mundo. As entidades públicas e privadas orientam as suas expectativas para a valorização da região do Alentejo, como produto posto em valor ao serviço do turismo. Os “portadores da tradição” partilham as mesmas expectativas de Margarida Castelhano (Vila Verde de Ficalho, 1947):

(…) Acho que agora tem mais valor o nosso cante, que antigamente já tinha valor para nós, mas agora é uma coisa diferente, é uma coisa mais divulgada no mundo inteiro. Penso que amanhã teremos melhores condições (…) espero que agora tenhamos mais privilégios, de gravar um CD, espero bem que sim. Tenho esperança que a gente vá divulgando o cante, que chegue mais longe e consigamos ir lá fora, não é irmos só aqui a terras pequeninas. (Margarida Castelhano, Ficalho, 23. 05. 2015).

O futuro dos grupos depende dos meios e dos materiais culturais que dispõem, das redes de relações que construíram, das posições sociais que ocupam nas suas comunidades, e do poder das comunidades a nível regional e nacional. Em contextos rurais envelhecidos e economicamente desarticulados o potencial do canto como recurso cultural sustentável é fundamental ao desenvolvimento humano (Turino 2009), porque não só as pessoas o sustêm, como ele sustem as pessoas. A gestão desta herança cultural implica a criação de modelos participativos, através de uma acção consertada entre grupos, autarquias e membros da comunidade. A salvaguarda do canto depende das condições de habitat em que as pessoas podem continuar a desenvolver as suas actividades, de distintas formas e por múltiplas razões. Como saber musical vinculado a memórias colectivas e práticas alimenta-se da criatividade, componente necessária à construção de imaginários e narrativas que atribuem sentido e significado à vida das pessoas, como Maria Rosa Campaniço, cantadeira do grupo “Flores do Chança”, transmite nos versos da moda que dedicou ao Cante em 2017:

(…)

Damos louvores a quem canta
Para todo o mundo alegrar
Nessas lindas melodias
Mostramos a nossa alegria
E o gosto pelo cantar.

Pomos a alma na voz
Alegram-se os corações
Tanta voz junta a cantar
Sem nenhuma destoar
Cativando as multidões.

O futuro do canto alentejano como expressão cultural e prática colectiva reside na poesia, como narrativa de vida identificada por Michel Giacometti, quando afirmou que “os cantos alentejanos actualizam as letras que frequentemente reflectem (…) os problemas, as tensões e as situações sociais do momento. (…)” (Giacometti, em Oliveira, 2017: 174). O futuro do Cante como património entrelaça-se no processo de re-socialização das práticas e das políticas, que a sociedade necessita na actualidade (Criado e Barreiro, 2013). O desafio reside em converter o campo patrimonial num activo campo de agenciamento social alternativo e contra-hegemónico, através do reconhecimento dos processos de participação social e de modelos de gestão e socialização de práticas que permitem construir o futuro.

Referência bibliográficas

Alves, Vera. 2013. Arte Popular e Nação no Estado Novo. A Política Folclorista do Secretariado de Propaganda Nacional. Lisboa: ICS.

Branco, Jorge Freitas. 1999. “Autoritarismo Político e Folclorização em Portugal: O Mensário das Casas do Povo (1946-1971)”, in Actas del VIII Congreso de Antropología, 29-45. Santiago de Compostela: Associón Galega de Antropoloxia.

Cabeça, Sónia Moreira e Santos, José Rodrigues dos. 2010. “As mulheres no Cante Alentejano”, in Proceedings of the International Conference in Oral Tradition. Ourense: Concello de Ourense.

Certeau, Michel de, e Julia, Dominique. 1989. “A beleza do morto: o conceito de ‘cultura popular’”. In  A Invenção da Sociedade, coord. Jacques Revel, 49-79. Lisboa: Difel.

Criado, Felipe Criado e Barreiro, David. 2013. “El patrimonio era otra cosa”. Estudios atacameños, 45: 5-18.

Leal, João. 2000. Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Melo, Daniel Seixas de. 2001. Salazarismo e Cultura Popular (1933-58). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

Moreira, Pedro Filipe Russo. 2012. “Cantando espalharei por toda parte”: programação, produção musical e o “aportuguesamento” da “música ligeira” na Emissora Nacional de Radiodifusão (1934I1949). Tese de doutoramento em Ciências Musicais – ramo Etnomusicologia, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Pestana, Maria do Rosário (coord.). 2014. Alentejo: vozes e estéticas em 1939/1940. Edição crítica dos registos sonoros realizados por Armando Leça. Tradisom Produções Culturais.

Oliveira, Luís Tiago de. 2017. “O Alentejo de Michel Giacometti”. In Cantar no Alentejo. A Terra, o Passado e o Presente, coord. de Maria do Rosário Pestana e Luísa Tiago de Oliveira, 151-181.  Estremoz Editora.

Ramos do Ó, Jorge. 1999. Os Anos de Ferro: O Dispositivo Cultural durante a “Política do Espírito”(1933-1949). Lisboa: Editorial Estampa.

Revel, Jacques. 1989. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel.

Sardinha, José Alberto. 2001. A Viola Campaniça: O Outro Alentejo. Sons da Tradição, vol.1, Tradisom Produções Culturais.

Silva, Augusto Santos Silva. 1994. Tempos cruzados: Um estudo interpretativo da Cultura. Porto: Edições Afrontamento.

Thompson, E. P. 1979. Tradición, Revuelta y Conciencia de Clase. Barcelona: Editorial Crítica.

Turino, Thomas. 2009. “Four Fields of Music Making and Sustainable Living”. The World of Music 51, (1): 95-117.

 Notas:

A Missão da Casa do Cante é a salvaguarda do Cante Alentejano, cuja Visão é a Sustentabilidade do Território através da Identidade, e onde os objetivos são criar projetos que autossustentem e valorizem os elementos de uma identidade em constante dinâmica. Disponível: http://www.casadocante.pt/

Vídeos realizados sobre o cante no feminino, durante o trabalho de campo:

III Encontro de Grupos Corais em Barrancos (Baixo Alentejo), 20 de Junho de 2018. URL: https://www.youtube.com/watch?v=NwVzPBvdfCc

Jornadas Cante no Feminino (Casa do Alentejo – Lisboa)”, organizado pelo MDM. Lisboa, 30 de Abril, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=TZtBZVORCmc

Grupo Coral Feminino “Vozes de Barrancos” (Barrancos – Baixo Alentejo), 15 de Março, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=UhGs6kjOqeU

5º Encontro de Coros Femininos Alentejanos (Feijó – Almada), 12 de Março, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=lIKQhZjPqYs

Grupo Coral “Flores do Chança” – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)”, 26 de Maio de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=a8pNqQtOrfM

Encontro de Grupos Corais – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 23 de Maio de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=hbX-gnXcilI

Homenagem ao Cante Alentejano – Barrancos (Baixo Alentejo)”, 26 de Abril de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=yab72LpT6Po

Homenagem ao Cante Alentejano – Amareleja (Baixo Alentejo), 10 de Janeiro de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=jLy85Yn5AqM

 

(Comunicação apresentada nas XVII Jornadas de Cultura Popular. Colóquio: Ofícios, Cantos e Contos, a mulher e a cultura popular , organizado pelo GEFAC, Coimbra, 30 de Março de 2019.)

 

 

Lugares, pessoas e práticas musicais na raia luso-espanhola

A zona fronteiriça do Baixo Alentejo /Extremadura / Andaluzia caracteriza-se pela baixa densidade populacional e o acentuado índice de envelhecimento (Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la zona de Cooperación, 2013: 1). Os municípios são os principais empregadores e debatem-se com problemas estruturais, como o desemprego e a desertificação, e reinventam-se por meio de atributos identitários e novas festas. A etnografia mostra-nos que as festividades e as atividades musicais financiadas pelos municípios estão direcionadas para a cooperação e a inclusão social, como estratégia de atração turística ao serviço da qualidade de vida das populações.

       

Em contextos rurais envelhecidos e economicamente desarticulados o potencial da música como recurso cultural sustentável é fundamental ao desenvolvimento humano (Turino 2009), porque não só as pessoas sustêm a música, como a música sustem as pessoas, como assinala Titon (2009: 14). Consequentemente, a transmissão da herança cultural  implica a criação de modelos participativos, através de uma ação consertada entre os agentes culturais e os membros da comunidade, a fim de desenvolverem atividades que aspiram a um futuro possível. Na linha proposta por Titon (2009a: 129), para salvaguardar as práticas de música e dança o mais importante é promover as condições de hábitat em que as pessoas podem continuar a fazer música de diversos tipos, de distintas formas e modos, e por múltiplas razões. Neste sentido a cultura expressiva na fronteira luso-espanhola não pode ser observada numa perspetiva macro de movimentos musicais transnacionais que a cruzam, sob pena de obscurecer e perturbar o conhecimento de um processo cultural que implica a interação entre as pessoas e os lugares, assim como o entendimento de práticas culturais que reconstroem um passado comum, ritual e convivencial.

 

Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020. http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf

Titon, Jeff Todd. 2009a. “Music and Sustainability: An Ecological Viewpoint”. The World of Music 51, (1): 119-137.

– 2009. “Economy, Ecology and Music: an Introduction”. The World of Music 51, (1): 5-15.

 

As celebrações musicais na raia do Baixo Alentejo: espaços de sociabilidade e experiências partilhadas

A relação entre música e desenvolvimento deve partir de abordagens que questionem o poder e a hegemonia do capitalismo global, e o seu impacto na vida das pessoas (Harvey 2007). Atendendo os processos económicos globalizados e aos processos sociais localizados, com o enfoque na experiência e na acção colectiva (Alguacil Gómez 2005). Isto significa que o nosso olhar sobre festas e festivais como fatores de desenvolvimento turistico deve estar atento ao avanço do capitalismo e às suas implicações na cultura, através de uma abordagem que permita compreender de que forma estes fenómenos são tratados em contextos locais (Hernández-Ramírez 2015).

No caso do Alentejo a estratégia de desenvolvimento regional delineada em Bruxelas, no quadro de programação 2014-2020, está direcionada para a exploração do Património Natural e Cultural como setor económico com elevado potencial para a rentabilização dos fatores identitários, e as verbas que comparticipam a realização das festas e festivais estão inseridas neste domínio, desde que a) tenham elevado impacto em termos de projeção da imagem da região, nomeadamente internacional; b) estejam associadas ao património e à cultura; c) apresentem potencial de captação de fluxos turísticos. (Portugal2020: https://www.portugal2020.pt/Portal2020/Media/Default/Docs/Programas%20Operacionais/TEXTOS%20INTEGRAIS%20DOS%20PO/PORALENTEJO2020_alterado.pdf)

O “património cultural” (Lowenthal 1998, Prats1998) transforma-se assim num espelhamento de uma sociedade desdobrada em mercadoria e espectáculo que é necessário “atualizar”, para lhe conferir um “poder de contemporaneidade”, de forma a corresponder às exigências do mercado, segundo duas perspectivas complementares: a globalização cultural e a heterogeneidade cultural por referência a identidades localizadas (Jeudy 2008).

Neste contexto, as festas e festivais transformaram-se num campo de estudo para investigadores de diversas áreas científicas, pelo universalismo da celebração, pela dimensão social das experiências festivas e como fator de desenvolvimento económico (Getz 2010, Gibson e Connell 2012, Jepson e Clark 2015.). Donald Getz (2010) diz-nos que os estudos estão pautados por três grandes discursos, ou linhas estruturadoras de produção de conhecimento. O discurso da antropologia e da sociologia, referente a papéis, significados e impactos das festas nas comunidades. O discurso dominado pela avaliação do impacto económico no turismo, ao nível do planeamento, do marketing e das motivações como destino turístico, que originou uma considerável reflexão e teoria crítica pelos festivais serem claramente mercantilizados pelo turismo. E o discurso empresarial, focado em elementos específicos da gestão de eventos, incluindo recursos humanos, riscos, logística e marketing, que ignora as necessidades fundamentais para a celebração e muitas das razões sociais e culturais que justificam o surgimento de novas festividades e eventos culturais.

Sem Título

A raia do Baixo Alentejo é uma das zonas da Península Ibérica com maiores índices de desertificação e de envelhecimento da população (ver Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020 http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf). A reprodução da maior parte das famílias já não passa pela agricultura, mas por atividades terciárias, trabalhos precários, pensões de reforma e subsídios de inserção social. Os municípios, como principais empregadores, debatem-se com falta de meios para responder a problemas estruturais, como o desemprego e a desertificação territorial (ver A ANMP e a atual situação do poder local em Portugal. 2012. Coimbra: Associação Nacional de Municípios Portugueses. Disponível em http://www.anmp.pt/files/dfin/2012/ANMP3201205PT.pdf). Ao abandono rural corresponde o desaparecimento da memória coletiva dos grupos, a que os poderes políticos contrapõem uma memória social patrimonializada e turistificada ao serviço do desenvolvimento económico da região.

 

Alguns dados estatísticos dos municipios raianos do Baixo Alentejo (2013)

Municipios
Barrancos Mértola Moura Serpa
Superficie/ km2 168,4 km² 1.292,9 km2 958,5 km2 1.105,6 km2
População residente 1.775 6.909 14.717 15.421
Densidade por km2 10,5% 5,3% 15,4% 13,9%
Desempregados inscritos no Centro de Emprego (% da pop.) 15,1,% 9,6% 16,8% 12,2%
Pensões de reformas (%) 46,9% 58,7% 49,1% 48,3%
Beneficiarios de RSI (%) 5,2% 2,6% 12,4% 6,3%
Despesas municipais na cultura e desporto (%) 11,3% 7,0% 12,9% 22,6%
Nº de Espectáculos 0 133 100 123
Nº de Recintos culturais 1 1 0 3

Fonte: PORDATA

Na última década assistimos à invenção de novas festas e festivais organizadas pelos municípios, baseadas em produtos e em particularidades culturais destinadas a atrair forasteiros e a competir com outros locais, por meio de atributos identitários. Nestas festas os municípios investem todos os seus recursos materiais e humanos, envolvem os produtores, as associações culturais, os grupos musicais e criam trabalhos temporários, que permitem a inclusão social e a cooperação entre os membros das comunidades.

ExpoBarrancos 2015

Aspecto da IX edição da ExpoBarrancos (Barrancos), 2015

Factor, 2016

Aspecto do Festival de Artes e Oficios da Raia – FATOR, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2016

Deste grupo de festas destaca-se pela projecção internacional o Festival Islâmico de Mértola e o Encontro de Culturas de Serpa. O Festival Islâmico de Mértola (Maio-bienal) foi criado em 2001 para celebrar a herança histórica e cultural islâmica da vila, segundo uma política “de encontro de culturas”, que mistura sonoridades alentejanas e do Magrebe numa diversificada programação musical. Durante quatro dias as ruas da zona histórica transformam-se num mercado árabe, que apela à diversidade cultural. Para além de exposições, conferências e workshops que dinamizam os equipamentos municipais e as associações culturais locais (ver http://www.festivalislamicodemertola.com/sobre-o-festival/apresentacao).

O Encontro de Culturas de Serpa foi criado em 2002, por um município que preconiza “a cultura como veículo de desenvolvimento sustentável para o concelho” e foi inicialmente designado por Encontros Luso-Brasileiros de Arte e Cultura. O espetáculo “EnRede” abre o evento, com a atuação de grupos musicais da Espanha, Brasil, Cabo Verde e América Latina, integrados numa rede cultural ibérico-americana. O dia 10 de Junho foi designado pelo “Dia do Cante” para promover os mais de 15 grupos corais alentejanos do concelho. O programa engloba ainda animações de rua, workshops, exposições e debates focalizados nas “indústrias culturais”, e na criação de redes de intercâmbio entre promotores e agentes culturais nacionais e internacionais (ver http://www.cm-serpa.pt/artigos.asp?id=1177).

Localmente as festas apresentam-nos diferentes organizadores, motivações, intencionalidades, públicos, recursos e géneros musicais, e devem ser interpretadas nos seus múltiplos significados. Do conjunto de festividades destacam-se as celebrações musicais de fruição local, organizadas por grupos corais alentejanos e por grupos de baile de sevilhanas, que representam experiências coletivas baseadas na convivialidade e na reciprocidade.

Ficalho 2015

Encontro de Grupos Corais, organizado pelas “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho, 2015

Os Encontros de grupos corais são atualmente integrados no Plano de Salvaguarda do Cante, e na relação deste com o desenvolvimento local, mas continuam a depender do trabalho voluntário de homens e mulheres que procuram os apoios financeiros necessários à sua concretização junto de entidades públicas e privadas. Os grupos convidados representam uma rede de relações construídas ao longo do tempo, segundo uma lógica de reciprocidade que marca a cultura dos grupos corais alentejanos. Isto significa que os grupos convidados têm a obrigação de retribuir o convite nas suas localidades, assim como as oferendas que recebem pela participação graciosa, segundo a “teoria da dádiva” de Marcel Mauss (2001 passin), fundamentada na obrigação de dar, de receber, e de retribuir.

grupos corais ficalho 2015

Grupo coral “Flores do Chança”, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2015

A mesma lógica de reciprocidade está presente nos espectáculos “Noche Flamenca”, organizados por grupos de sevilhanas nas suas localidades, para festejarem o término do ano escolar e exibirem as competências técnicas e artísticas adquiridas. A organização é coordenada pela professora Ana Castilla, natural de Cortegana (Huelva) e resulta da cooperação entre diversos coletivos (grupos familiares, associações culturais e autarquias) que participam na construção de geografias emocionais e atraem um público muito diversificado. Em todos os espectáculos participam grupos provenientes de ambos os lados da fronteira, para mostrarem que a música e a dança representam um trabalho experimental que engloba o processo estético e criativo com o processo social de interação entre portugueses e espanhóis.

rede

O trabalho e a iniciativa dos grupos corais e dos grupos de baile estabelecem uma clara relação entre música e desenvolvimento, e representam um “espirito empreendedor” que não se inscreve na lógica empresarial. Antes pelo contrário, as celebrações musicais resistem à dinâmica da globalização, baseada na extensão da lógica mercantil às práticas da cultura, através uma dinâmica cultural oposta e complementar de afirmação de práticas musicais baseadas na convivialidade, na cooperação e na reciprocidade.

noche flamenca 2014

“Noche Flamenca” de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2014.

A etnografia mostra-nos que as festas organizadas pelos municípios rentabilizam os meios materiais e humanos disponíveis e estão orientadas para a inclusão social e a cooperação, através da criação de trabalhos temporários e da valorização de práticas da cultura, como marcadores da memória coletiva. As festas comemoram as identidades e os valores das comunidades e assinalam um tempo de utopia, de alegria e abundância, pela partilha de experiências, de bens e de afectos. Num contexto rural economicamente desarticulado os impactos das festas são muito diversificados, embora exista um denominador comum na predisposição colectiva para se viver a festa como um tempo de esperança contra as incertezas do futuro. A “sociabilidade festiva” como experiência colectiva é fundamental à transmissão de valores e de saberes, e como ponto de convergência de pessoas em torno de atividades musicais significantes, que resistem aos modelos de turistificação e mercantilização da cultura.

noche flamenca Barrancos, 2015

“Noche Flamenca” de Barrancos, 2015

Num contexto rural e fronteiriço as práticas musicais entrelaçam a dimensão micro das relações de vizinhança com a dimensão macro de uma sociedade globalizada. As celebrações musicais dos grupos corais e dos grupos de sevilhanas promovem uma imagem do lugar para o exterior, como imagem de marca de atributos culturais que não dissociam a música de uma cultura baseada na convivialidade e na reciprocidade, como valor de pertença a um “lugar social” por oposição aos “não lugares”(Augé 2005). Um lugar social individualizado no espaço e no tempo, pertencente a um mundo global, que permite o desenvolvimento da criatividade e a construção de utopias que atribuem sentido e significado à vida de pessoas que participam na construção de futuros possíveis.

 

Referências bibliográficas:

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Prats, Llorenç. 1998. “El concepto de patrimonio cultural”. Política y Sociedad (27): 63-76.

 

(Comunicação apresentada ENIM 2016- VI Encontro Nacional de Investigação em Música, que se realizou na Universidade de Aveiro de 3 a 5 de novembro de 2016. Programa: http://www.spimusica.pt/wp-content/uploads/2016/05/Programa-ENIM-2016.pdf)

 

O Cante na raia do Baixo Alentejo – passado, presente e horizontes de expectativa

No filme “Alentejo, Alentejo”, de Sérgio Tréfaut, o mestre Bento Maria Adega, cantador de Safara, diz-nos que “foram cigarras e pássaros que ensinaram os alentejanos a cantar”. No entanto, os estudiosos atribuem diversas origens ao Cante Alentejano, que entrelaçam influências culturais cristãs, judaicas e árabes. Sobre as terras alentejanas escreveu Luís de Freitas Branco: “a região alentejana, de tão gloriosas tradições musicais, parece justificar, na tendência polifónica do seu povo, a teoria geralmente aceite de que a extraordinária florescência do estilo a cappella, em volta de Évora, não fosse obra do acaso” (Freitas Branco, 1929: 24). Armando Leça ao referir-se à imensa planície que é o Baixo Alentejo e aos seus magníficos corais escreveu: “a paisagem do Baixo Alentejo sem corais é como catedral gigantesca sem as sonoridades do órgão” (Leça, s/d: 32). Rodney Gallop (1960) também manifestava um entusiástico fascínio pelo Cante, afirmando: “na pequena região de entre Beja e a raia, que compreende Serpa, Moura e alguns sítios mais humildes, conservou-se uma tradição de cantar a três partes, que não tem paralelo na minha experiência de qualquer país” (Gallop, 1960: 30). No entanto, as primeiras referências documentais ao Cante remetem para o final do século XIX, início do século XX, e a denominação mais antiga e usual era de “Canto às Vozes”. João Ranita Nazaré diz-nos que a primeira alusão aos cantares no Baixo Alentejo data de 1886, da autoria de Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho (1837-1903), num livro de contos em que descreve alguns costumes populares e onde o Cante surge ligado à dança: “ficavam horas no baile, andando à roda n’um passo vagaroso, cantando em coro as modas lentas, entoadas em terceiras, prolongadas em sonoridades singulares e doces” (Marchi, 2010: 8). Na revista A Tradição (1899-1904) encontramos um conjunto de textos de Manuel Dias Nunes e um cancioneiro com 60 cantigas (com pauta), que manifestam o interesse das elites intelectuais pelo Cante e outras práticas musicais associadas à cultura popular. A César das Neves e Gualdino de Campos devem-se os três volumes do Cancioneiro de Musicas Populares (1893-1899) contendo letra e música de canções, e a António Tomás Pires os quatro volumes que compõem os Cantos Populares Portugueses (1902-1910) recolhidos da tradição oral, contendo canções provenientes das diversas províncias portuguesas, com predomínio do Alentejo. Na Amareleja, terra do Padre António Marvão, musicólogo e folclorista autor do Cancioneiro Alentejano (1946), encontramos na Sociedade Recreativa Amarelejense uma foto de um grupo de cantadores, datada de 1887, que serve para legitimar a tradição do Cante junto dos seus associados e inspirar o actual grupo coral, formado em 2007.

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Em 1902, Manuel Dias Nunes fala-nos dos cantadores: “essa pobre e sofredora gente, que leva a vida inteira a moirejar, disseminada por montes e vales, à chuva, ao sol, ao frio, encontra no canto coral como que um doce lenitivo à rudeza do labor que a subjuga desde o berço até à sepultura.” (“Costumes da minha terra ― os descantes”, in A Tradição, Ano IV, p. 8). José Alberto Sardinha (2001) descreve-nos a prática do cante e da dança nas aldeias alentejanas nos seguintes termos:

“As moças cantavam muito bem, frequentemente sozinhas, fazendo a polifonia tradicional do canto alentejano. Ali, a tradição não tinha senão uma regra fixa: no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto. Não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar e os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar” (Sardinha, 2001: 29).

Na década de 1930, com o início do processo de folclorização, cujo objectivo era representar a tradição duma localidade, duma região ou da Nação, assistimos à mobilização de mediadores, pessoas letradas que exerciam influência pessoal ao nível local, regional e nacional, e intervinham na selecção e adaptação de repertórios, na organização de grupos folclóricos e de eventos (Castelo-Branco & Branco, 2003). No processo de adequação do Cante ao contexto político e cultural do Estado Novo, as casas do povo foram o espaço social privilegiado para a criação e emblematização dos grupos corais, como representações locais da Nação. A partir de 1933 o Estado Novo controla todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. Os estatutos da FNAT (1935) determinavam uma educação estética de exaltação do rural, assente nos pilares do folclore e da etnografia, impondo um “modelo nacionalista-ruralista-tradicionalista da cultura popular”, com o objectivo de legitimar o regime e estabelecer um consenso social em torno de um conjunto de valores, imagens e práticas culturais (Torgal, 1982). As elites locais alentejanas participaram deste processo, e contribuíram para a “domesticação” e divulgação dos grupos corais, organizando espectáculos na capital. No primeiro espectáculo organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), a 23 de Março de 1937, no Teatro São Luís em Lisboa, participaram os grupos corais de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). Francisco Valente Machado (1980) afirma ter sido “a primeira vez que cantadores alentejanos se exibiram na capital do País”, e descreve como se “deslocaram em passos lentos e cadenciados pelo Chiado abaixo até ao Rossio, entoando maravilhosos cantos da sua província, como se se encontrassem nas terras das suas naturalidades”. Para assinalar a participação no evento, o cantador António Soares, do grupo coral de Vila Verde Ficalho, versejou: “Esta noite sonhei eu /Um sonho muito feliz/ Sonhei que estava cantando / No Teatro São Luís” (Machado, 1980: 279).

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Entre 1939 e 1940, o musicólogo Armando Leça realizou o primeiro levantamento “músico-popular feito em Portugal através do registo mecânico de som”, de cantares e danças populares. Tratava-se de uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade e o terceiro da Restauração. O objectivo era organizar uma compilação “das mais características e genuínas músicas e canções populares existentes em todas as províncias do continente português” (Sardinha, 1992). Armando Leça esteve no Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve. No Baixo Alentejo foram gravados grupos de Moura, Serpa, Aldeia Nova de São Bento, Baleizão, Aljustrel, Castro Verde Mértola e Vila Verde de Ficalho. O registo de som em fita magnética esteve a cargo da Emissora Nacional, mas a publicação desta recolha pioneira, prevista pela Comissão dos Centenários, não chegou a realizar-se (Sardinha, 1992). No entanto, a 30 de Novembro de 1940 Armando Leça proferiu uma conferência sobre o seu trabalho, intitulada: “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, na Casa do Alentejo, durante a qual se exibiu o grupo de cantadores de Vila Verde de Ficalho.

armando leça

O Cante estava profundamente ligado à vida dos trabalhadores rurais, ao trabalho agrícola, ao convívio nas tabernas, e às festas, animando os bailes ao som da viola campaniça, da harmónica ou do adufe, que serviam para imprimir ritmo (Marvão, 1955; Machado, 1980). Joaquim Soares, presidente da direcção da “Associação Moda”, recorda que o Cante era entoado por homens e mulheres, que cantavam no campo, a caminho de casa, nas festas, e que hoje o Cante é associado sobretudo aos homens, porque “era nas tabernas, em torno do vinho e do tremoço, que se organizavam os grupos, e aqui não entravam as mulheres. Falamos dos anos 40, 50 do século XX. (…) Hoje há menos convívio. Hoje os grupos marcam ensaios. Antes cantavam a trabalhar e no lazer e assim se organizavam” (ver artigo “Associação Moda – O cante alentejano é «melodia que transmite o sentimento de um povo»” em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=4611). No mesmo sentido falaram os cantadores e cantadeiras com quem conversei em Santo Aleixo da Restauração, em Barrancos, na Amareleja e em Vila Verde de Ficalho, quando evocam o Cante como expressão de sentimentos e experiências de vida.

O Cante Alentejano é caracterizado como uma polifonia simples, a duas vozes paralelas, à terceira superior, formado por um coro, sem instrumentos, de homens, de mulheres ou misto, que cantam estruturas poéticas denominadas por “modas”. Segundo Manuel Joaquim Delgado (1955) esta denominação provém do facto destas canções se divulgarem de boca em boca, entre a população rural alentejana, caindo assim na “moda” (1955: 7). As “modas” cantam a terra, o trabalho, os acontecimentos e os sentimentos de homens e mulheres, no sentido do amor, da saudade, da zombaria e da crítica social. As modas são formadas por estrofes poéticas e interpretadas segundo um cânone estabelecido: um solista, denominado como ponto, inicia o canto, cantando uma quadra solta, de seguida um outro, designado por alto, substitui-o, cantando o primeiro verso da moda, e de seguida todo o coro se lhes junta para cantar o restante. O padre António Marvão (1955) diz-nos que podemos dividir o cante alentejano em três tipos de música: as modas lentas, as modas coreográficas e os cantes religiosos, como os “Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo” publicados nesta página (https://culturaexpressiva.wordpress.com/2015/01/24/cantos-populares-de-natividade-das-janeiras-e-dos-reis-na-raia-do-baixo-alentejo/)
Nos finais da década de 1950, as transformações na agricultura e os subsequentes fluxos migratórios dos trabalhadores rurais para as cidades, na procura de melhores condições de vida, altera a geografia emocional do Cante, como espaço de interação social entre as pessoas e os lugares. No contexto da Diáspora formam-se os primeiros grupos corais nos arredores de Lisboa, enquanto os grupos locais perdem gradualmente os seus cantadores. No pós 25 de Abril os grupos corais alentejanos são resignificados e participam em comícios, manifestações e reivindicações dos trabalhadores rurais, assumindo um papel de intervenção política. Assiste-se à formação de novos grupos nos quais as mulheres passam a assumir um papel relevante, e à criação de “modas” que denunciam a exploração, a fome, a repressão nos campos e as legitimas aspirações da Reforma Agrária. A partir da década de 1980, com o fim do processo revolucionário, abandona-se as temáticas de intervenção politica e social, recuperam-se os repertórios tradicionais e vive-se um período de indefinição do Cante, que conduz ao desaparecimento e envelhecimento dos grupos. Na década de 1990 assiste-se a uma renovação do Cante, com o surgimento de novos grupos na Diáspora e de grupos femininos locais, que teimam em manter e defender a sua identidade cultural.

No ano 2000 foi criada a MODA – Associação do Cante Alentejano, para “divulgar, defender e dignificar o canto alentejano”, congregando uma parte significativa dos grupos corais em actividade no Alentejo e nas regiões de Lisboa e Setúbal. Numa entrevista à agência Lusa, Joaquim Soares afirmava que “o envelhecimento dos grupos corais era um dos grandes problemas do Cante”, precisando que a maioria dos grupos associados da Moda “eram constituídos sobretudo por homens entre os 50 e os 70 anos”. Joaquim Soares defendia o ensino das modas nas escolas e nos conservatórios da região, para que as novas gerações aprendessem “o cantar típico da sua terra como aprendem outras músicas” (ver artigo em: http://expresso.sapo.pt/cante-alentejano-sobrevivencia-depende-da-convivencia-dos-dos-mais-velhos-com-geracao-mp3=f533813#ixzz2aYbKDQjM).
Em 2012, José Francisco Colaço Guerreiro, num artigo publicado no Correio do Alentejo afirmava que “o cante hoje deve ser tido como um produto cultural, um património de inestimável valor, pertença colectiva de um povo e de uma região e não mais uma manifestação etnográfica específica do proletariado rural” (ver artigo em: http://www.correioalentejo.com/?opiniao=1157&page_id=56). Para o músico Janita Salomé “é no território de laboratório, experimentando coisas novas, nomeadamente instrumentos, que o cante deve evoluir, sem perder a sua matriz”, para isso, considera que “é essencial captar gente nova para o cante” (ver artigo em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=5255&dossier=http%3A%2F%2Fwww.cafeportugal.pt%2Fpages%2Fdossier_artigo.aspx%3Fid%3D6038&did=6038). Neste sentido, foram implementados dois projectos de ensino do Cante Alentejano, um em Serpa e outro na Damaia, para além de novos projectos que têm surgido em Barrancos e na Amareleja, motivados pela candidatura e reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade. Por outro lado, assiste-se ao surgimento de novos grupos corais, constituídos por jovens com formação musical, oriundos de contextos urbanos, que parecem dar resposta às problemáticas em torno da continuidade do Cante. O processo de candidatura, ao mobilizar autarquias, associações, agentes culturais e grupos corais também criou novas expectativas nos cantadores. Todavia, continuam a debater-se com os problemas de sempre, a falta de recursos financeiros e de reconhecimento como grupos musicais, no contexto da indústria discográfica e do espectáculo.

 

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SARDINHA, José Alberto (1992) “Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular realizado em Portugal”, em: http://run.unl.pt/handle/10362/6737
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Revista A Tradição (criada em 1899 por Ladislau Piçarra e Manuel Dias Nunes). Vol.1 consultável em: http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up

Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo

No reinado de D. João V, mais precisamente em 1716, o costume popular de cantar vilancicos por altura das festas do Natal, dos Reis e da Imaculada Conceição de Maria foi interrompido definitivamente, por motivo da adoção do cerimonial litúrgico romano, objetivo muito ambicionado pelo Rei Magnânimo (Lopes, 2014: 84). (…) Na Capela Real, os primeiros vilancicos a incorporar secções de tipo italiano localizam-se no folheto para a Festa da Imaculada Conceição de 1709, mas é de salientar que estas secções começam a escutar-se em Lisboa quatro anos antes, associadas à Festa de Santa Cecília, comemorada na Igreja Paroquial de Santa Justa (p. 86).

Michel de Certau (1989) diz-nos que no séc. XVIII se apoderou da aristocracia esclarecida “uma espécie de entusiasmo pelo popular”, uma «rusticofilia», como reverso de um medo radicado na cidade “perigosa e geradora de corrupção”, que justifica o regresso a uma “pureza original dos campos, símbolo das virtudes conservadas desde os tempos mais remotos”. No entanto, o camponês já está civilizado pelos costumes e a moral cristã, que produziram “súbditos fiéis, dóceis e laboriosos” (1989: 52). O regresso a um povo ao qual se cortou a palavra para melhor o domesticar, sustenta a idealização do popular sob a forma de um monólogo. A linguagem da religião poderia ser o último recurso de uma cultura que já não se podia exprimir, e que tinha de se calar, ou mascarar, para fazer ouvir uma ordem cultural diferente. Aliás, já que o povo não falava, podia pelo menos cantar, e “o prazer experimentado pela auréola «popular», que cobre melodias inocentes, está precisamente na base de uma concepção elitista da cultura” (1989: 53).
Em Barrancos (Baixo Alentejo), na véspera de Natal, ainda se cantam villancicos de Navidad, do cancioneiro tradicional da Extremadura, acompanhados pela zambomba. Na Extremadura os villancicos são acompanhados por instrumentos de corda, como a bandurra, a guitarra e pelo acordéon. Todavia, na Andalucía, os villancicos e cânticos populares de Navidad são acompanhadas pela zambomba, instrumento de percussão, que em Portugal também é designado por sarronca. Neste vídeo, Manuel Torrado e Maria dos Remédios Guerreiro recordam alguns versos de vilancicos que cantavam frente à igreja, ao calor do lume que arde na Praça.

Zambobita, zambombita
Yo te tengo que romper
A la puerta de mi novia
No quisiste tocar bien.
(…)
Villancicos De Navidad – La Virgen va Caminando
La Virgen va caminando
por una montaña oscura
y al vuelo de una perdiz
se la ha espantado la mula.
(…)

Villancicos De Navidad – Los Peces En El Río
(…)
Pero mira como beben
los peces en el río,
pero mira como beben
por ver al Dios nacido.
Beben y beben y vuelven a beber,
los peces en el río
por ver a Dios nacer.

Em Vila Verde de Ficalho, Michel Giacometti gravou um grupo de homens, na sua maioria trabalhadores rurais, dirigido por Mestre Bento, barbeiro de profissão, cantando a “Moda ao Menino”, do reportório tradicional de Ficalho, um dos mais valiosos temas da música coral alentejana. Michel Giacometti considerava que o Baixo Alentejo era, talvez, das regiões mais pródigas do país em cantares alusivos ao nascimento do Menino, e assinalava: “o homem sul alentejano, por razões a que a sua condição social e económica talvez não seja estranha, canta modas cuja linha severa não impede uma certa ternura ao Menino nascido em «tão pobres agasalhos, que até parece impossível» como dirá um dos nossos amigos de Ficalho”. (“O Povo que canta”, 11.º Programa, emitido a 27 de Dezembro de 1971)

Os trabalhadores rurais sempre entoaram cantos religiosos na quadra pós-natalícia, (Janeiras, Reis), como forma de pedir esmola à porta dos ricos. O canto “Oração das Almas”, interpretado por um grupo de cantadores do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração, integra-se no repertório dos cantos de Janeiras e Reis registados por Michel Giacometti em 1971. O canto de Janeiras, ou canto de peditório, prática musical encontrada em numerosas povoações rurais de norte a sul do país, era geralmente cantado às portas das pessoas mais abastadas, na noite de 31 de Dezembro. Como recordava o Padre António Marvão (1956), “quem não se lembra ainda, quando criança, ou mesmo depois de grande, de lhe chegarem à porta, de noite, na paz abençoada da lareira grupos de cantadores, às vezes mistos, a cantar os Reis ou as Janeiras!? Que unção espiritual despertavam em nossa alma esses cantos religiosos, elevando o nosso pensamento para o Alto, para o Céu, onde mora a Felicidade e a Paz! No silêncio impressionante da noite fria, o nosso coração enchia-se de compaixão pelos pobrezinhos, que, nas pessoas dos cantadores, eram contemplados com figos, passas, carne de porco, pão e até dinheiro.” (Marvão 1956: 13)

José Patrício, cantador do Grupo Coral Masculino da Casa do Povo da Amareleja (Baixo Alentejo) recorda-nos como cantava os Reis na Amareleja: “Comecei a cantar os Reis tinha aí os meus oito ou dez anos. Andava com um grupo de miúdos da mesma idade, e a gente ia de porta em porta a cantar os Reis para nos darem alguma coisa. Davam-nos umas castanhas, uns marmelos, ou uns dinheiritos que depois a gente repartia por todos. Íamos à casa dos ricos, que esses versos eram dedicados aos ricos, à casa do Dr. Zé, do senhor Eugénio Barreto, do senhor Tonico Luís, do senhor Adolfo, e também íamos àquelas casas mais pobres, davam-nos uns figuinhos e outras coisas assim. Era muito divertido. Hoje já não há esse divertimento como havia antigamente, agora os rapazes já não sabem cantar os Reis” (José Patrício, 71 anos, agricultor).

Na Amareleja, os cantadores do Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense, formado em 2007, por 28 elementos com idades compreendidas entre os 32 e os 80 anos, dirigidos pelo mestre António Castelhano Miguel, ensaiam a “Oração das Almas”, canto que na noite de 5 para 6 de Janeiro de 2015 entoaram pelas ruas da vila.

À porta de uma Alma Santa
Bate um Deus, a toda a hora
Alma Santa, respondeu
Ó meu Deus, que quereis agora?
Quero-te a ti, Alma Santa
Lá para, o Reino da Glória.

Fontes bibliográficas:
“Vilancicos que se cantaram na Paroquial de Santa Justa nas matinas e festa da Santa Cecília, 1705”, em: http://purl.pt/…/424812_PD…/424812_0000_1-24_t24-C-R0150.pdf

Certeau, Michel de & Julia, Dominique (1989) “A beleza do morto: o conceito de «cultura popular». In A Invenção da Sociedade, Lisboa: Difel pp.49-59.

Lopes, Rui Cabral (2014) “O Villancico no reinado de D. João V: Entre a persistência do costume e a mudança de paradigmas litúrgico-musicais”. Artigo completo disponível em: http://rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/view/27/27

Marvão, António, 1956, O Alentejo Canta. Conferência proferida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Beja, no dia 17 de Junho de 1956, Braga, Editorial Franciscana.

Revel, Jacques (1989) A Invenção da Sociedade, Lisboa: Difel.

Internet:
Jacinto Saramago reuniu algumas cantigas de Navidad para zambomba que podem ser consultadas aqui: http://estadodebarrancos.blogspot.pt/…/cantigas-do-natal-ba…