Uma festa transfronteiriça em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)

A Festa da Senhora das Pazes remonta historicamente ao séc. XVIII, segundo o estudioso local Francisco Valente Machado, que atribui a iniciativa à 2ª Condessa de Ficalho, na sequência de uma contenda entre os seus filhos e os fidalgos de Aroche. A Ermida da Senhora das Pazes está identificada como arquitectura religiosa do séc. XVI, manuelina, barroca, popular, lugar de peregrinação característica da popularização dos modelos manuelinos. A construção e localização junto ao rio Chança, que delimita a fronteira luso-espanhola, é justificada na “Lenda da Nossa Senhora das Pazes” que permanece na memória colectiva: “no tempo da guerra de Espanha com Portugal, houve uma grande batalha em Ficalho e durante a batalha apareceu uma Santa no cimo de uma azinheira e acabou com a guerra. Então nesse sítio foi construída uma capela a capela da Nossa Senhora das Pazes. Ainda hoje é a padroeira da povoação e a capela está localizada no lugar onde supostamente apareceu a Santa”.

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A história da Senhora das Pazes cristaliza-se num mito fundador da comunidade fronteiriça de Vila Verde de Ficalho. Para o antropólogo William Kavanagh, “las fronteras constituyen espacios – y lugares – de producción cultural, donde se crean, y a la vez se destruyen, diversos significados. La frontera no es una entidad estática, sino que es algo que constantemente se construye (y reconstruye) de diversas maneras” (Kavanagh et al, 2009: 153). As festividades servem para reconstruir e resignificar o lugar da fronteira, desarticulado pelas transformações no mundo rural, pelos  fluxos migratórios e pela abolição das linhas divisórias, renovando profundas e duradouras continuidades culturais. A aparição de uma figura sobrenatural, que intervém simbolicamente na vida das comunidades de Ficalho e Rosal de la Frontera, permite a incorporação de valores transmitidos oralmente, de geração em geração, por meio da memória colectiva e de práticas rituais e performativas. Os rituais e símbolos festivos dão sentido e significado à vida das pessoas, perpetuando e reativando ciclicamente o relato histórico do qual são o reflexo.

A Festa é organizada por uma Comissão, composta por pessoas de diferentes géneros e idades, nomeados pelos festeiros cessantes, entre os quais se distribuem tarefas e responsabilidades de acordo com as suas competências. Ao grupo da Comissão de Festas compete assegurar a continuidade de uma tradição religiosa-popular, por meio de diversas iniciativas, ao longo do ano, que permitam custear o evento. A romaria e o arraial que se realizavam, outrora, na segunda-feira de Pascoela, exigiram uma recalendarização ajustada à realidade de uma comunidade migrada.  A festa religiosa e popular no campo, em torno da Ermida, reúne um conjunto de símbolos e rituais que reforçam as relações de vizinhança. A música e a dança estão presentes no arraial, como expressão da cultura popular de ambos os lados da fronteira, como as sevillanas entoadas de improviso pelos vizinhos de Rosal de la Frontera.

Como nos diz John Blacking, (1979) a música e a dança encontram nas festas o tempo e o espaço privilegiado para a “invenção e reinvenção da cultura através da interacção social”, como campo criador de significados. O cante alentejano, as sevillanas, o rebombar dos bombos, e as modas para bailar interpretadas por um grupo de música tradicional de Vale de Vargo, são modelos de transmissão e construção identitária que encontramos nesta festa transfronteiriça.

 

 

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