As celebrações musicais na raia do Baixo Alentejo: espaços de sociabilidade e experiências partilhadas

A relação entre música e desenvolvimento deve partir de abordagens que questionem o poder e a hegemonia do capitalismo global, e o seu impacto na vida das pessoas (Harvey 2007). Atendendo os processos económicos globalizados e aos processos sociais localizados, com o enfoque na experiência e na acção colectiva (Alguacil Gómez 2005). Isto significa que o nosso olhar sobre festas e festivais como fatores de desenvolvimento turistico deve estar atento ao avanço do capitalismo e às suas implicações na cultura, através de uma abordagem que permita compreender de que forma estes fenómenos são tratados em contextos locais (Hernández-Ramírez 2015).

No caso do Alentejo a estratégia de desenvolvimento regional delineada em Bruxelas, no quadro de programação 2014-2020, está direcionada para a exploração do Património Natural e Cultural como setor económico com elevado potencial para a rentabilização dos fatores identitários, e as verbas que comparticipam a realização das festas e festivais estão inseridas neste domínio, desde que a) tenham elevado impacto em termos de projeção da imagem da região, nomeadamente internacional; b) estejam associadas ao património e à cultura; c) apresentem potencial de captação de fluxos turísticos. (Portugal2020: https://www.portugal2020.pt/Portal2020/Media/Default/Docs/Programas%20Operacionais/TEXTOS%20INTEGRAIS%20DOS%20PO/PORALENTEJO2020_alterado.pdf)

O “património cultural” (Lowenthal 1998, Prats1998) transforma-se assim num espelhamento de uma sociedade desdobrada em mercadoria e espectáculo que é necessário “atualizar”, para lhe conferir um “poder de contemporaneidade”, de forma a corresponder às exigências do mercado, segundo duas perspectivas complementares: a globalização cultural e a heterogeneidade cultural por referência a identidades localizadas (Jeudy 2008).

Neste contexto, as festas e festivais transformaram-se num campo de estudo para investigadores de diversas áreas científicas, pelo universalismo da celebração, pela dimensão social das experiências festivas e como fator de desenvolvimento económico (Getz 2010, Gibson e Connell 2012, Jepson e Clark 2015.). Donald Getz (2010) diz-nos que os estudos estão pautados por três grandes discursos, ou linhas estruturadoras de produção de conhecimento. O discurso da antropologia e da sociologia, referente a papéis, significados e impactos das festas nas comunidades. O discurso dominado pela avaliação do impacto económico no turismo, ao nível do planeamento, do marketing e das motivações como destino turístico, que originou uma considerável reflexão e teoria crítica pelos festivais serem claramente mercantilizados pelo turismo. E o discurso empresarial, focado em elementos específicos da gestão de eventos, incluindo recursos humanos, riscos, logística e marketing, que ignora as necessidades fundamentais para a celebração e muitas das razões sociais e culturais que justificam o surgimento de novas festividades e eventos culturais.

Sem Título

A raia do Baixo Alentejo é uma das zonas da Península Ibérica com maiores índices de desertificação e de envelhecimento da população (ver Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020 http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf). A reprodução da maior parte das famílias já não passa pela agricultura, mas por atividades terciárias, trabalhos precários, pensões de reforma e subsídios de inserção social. Os municípios, como principais empregadores, debatem-se com falta de meios para responder a problemas estruturais, como o desemprego e a desertificação territorial (ver A ANMP e a atual situação do poder local em Portugal. 2012. Coimbra: Associação Nacional de Municípios Portugueses. Disponível em http://www.anmp.pt/files/dfin/2012/ANMP3201205PT.pdf). Ao abandono rural corresponde o desaparecimento da memória coletiva dos grupos, a que os poderes políticos contrapõem uma memória social patrimonializada e turistificada ao serviço do desenvolvimento económico da região.

 

Alguns dados estatísticos dos municipios raianos do Baixo Alentejo (2013)

Municipios
Barrancos Mértola Moura Serpa
Superficie/ km2 168,4 km² 1.292,9 km2 958,5 km2 1.105,6 km2
População residente 1.775 6.909 14.717 15.421
Densidade por km2 10,5% 5,3% 15,4% 13,9%
Desempregados inscritos no Centro de Emprego (% da pop.) 15,1,% 9,6% 16,8% 12,2%
Pensões de reformas (%) 46,9% 58,7% 49,1% 48,3%
Beneficiarios de RSI (%) 5,2% 2,6% 12,4% 6,3%
Despesas municipais na cultura e desporto (%) 11,3% 7,0% 12,9% 22,6%
Nº de Espectáculos 0 133 100 123
Nº de Recintos culturais 1 1 0 3

Fonte: PORDATA

Na última década assistimos à invenção de novas festas e festivais organizadas pelos municípios, baseadas em produtos e em particularidades culturais destinadas a atrair forasteiros e a competir com outros locais, por meio de atributos identitários. Nestas festas os municípios investem todos os seus recursos materiais e humanos, envolvem os produtores, as associações culturais, os grupos musicais e criam trabalhos temporários, que permitem a inclusão social e a cooperação entre os membros das comunidades.

ExpoBarrancos 2015

Aspecto da IX edição da ExpoBarrancos (Barrancos), 2015

Factor, 2016

Aspecto do Festival de Artes e Oficios da Raia – FATOR, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2016

Deste grupo de festas destaca-se pela projecção internacional o Festival Islâmico de Mértola e o Encontro de Culturas de Serpa. O Festival Islâmico de Mértola (Maio-bienal) foi criado em 2001 para celebrar a herança histórica e cultural islâmica da vila, segundo uma política “de encontro de culturas”, que mistura sonoridades alentejanas e do Magrebe numa diversificada programação musical. Durante quatro dias as ruas da zona histórica transformam-se num mercado árabe, que apela à diversidade cultural. Para além de exposições, conferências e workshops que dinamizam os equipamentos municipais e as associações culturais locais (ver http://www.festivalislamicodemertola.com/sobre-o-festival/apresentacao).

O Encontro de Culturas de Serpa foi criado em 2002, por um município que preconiza “a cultura como veículo de desenvolvimento sustentável para o concelho” e foi inicialmente designado por Encontros Luso-Brasileiros de Arte e Cultura. O espetáculo “EnRede” abre o evento, com a atuação de grupos musicais da Espanha, Brasil, Cabo Verde e América Latina, integrados numa rede cultural ibérico-americana. O dia 10 de Junho foi designado pelo “Dia do Cante” para promover os mais de 15 grupos corais alentejanos do concelho. O programa engloba ainda animações de rua, workshops, exposições e debates focalizados nas “indústrias culturais”, e na criação de redes de intercâmbio entre promotores e agentes culturais nacionais e internacionais (ver http://www.cm-serpa.pt/artigos.asp?id=1177).

Localmente as festas apresentam-nos diferentes organizadores, motivações, intencionalidades, públicos, recursos e géneros musicais, e devem ser interpretadas nos seus múltiplos significados. Do conjunto de festividades destacam-se as celebrações musicais de fruição local, organizadas por grupos corais alentejanos e por grupos de baile de sevilhanas, que representam experiências coletivas baseadas na convivialidade e na reciprocidade.

Ficalho 2015

Encontro de Grupos Corais, organizado pelas “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho, 2015

Os Encontros de grupos corais são atualmente integrados no Plano de Salvaguarda do Cante, e na relação deste com o desenvolvimento local, mas continuam a depender do trabalho voluntário de homens e mulheres que procuram os apoios financeiros necessários à sua concretização junto de entidades públicas e privadas. Os grupos convidados representam uma rede de relações construídas ao longo do tempo, segundo uma lógica de reciprocidade que marca a cultura dos grupos corais alentejanos. Isto significa que os grupos convidados têm a obrigação de retribuir o convite nas suas localidades, assim como as oferendas que recebem pela participação graciosa, segundo a “teoria da dádiva” de Marcel Mauss (2001 passin), fundamentada na obrigação de dar, de receber, e de retribuir.

grupos corais ficalho 2015

Grupo coral “Flores do Chança”, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2015

A mesma lógica de reciprocidade está presente nos espectáculos “Noche Flamenca”, organizados por grupos de sevilhanas nas suas localidades, para festejarem o término do ano escolar e exibirem as competências técnicas e artísticas adquiridas. A organização é coordenada pela professora Ana Castilla, natural de Cortegana (Huelva) e resulta da cooperação entre diversos coletivos (grupos familiares, associações culturais e autarquias) que participam na construção de geografias emocionais e atraem um público muito diversificado. Em todos os espectáculos participam grupos provenientes de ambos os lados da fronteira, para mostrarem que a música e a dança representam um trabalho experimental que engloba o processo estético e criativo com o processo social de interação entre portugueses e espanhóis.

rede

O trabalho e a iniciativa dos grupos corais e dos grupos de baile estabelecem uma clara relação entre música e desenvolvimento, e representam um “espirito empreendedor” que não se inscreve na lógica empresarial. Antes pelo contrário, as celebrações musicais resistem à dinâmica da globalização, baseada na extensão da lógica mercantil às práticas da cultura, através uma dinâmica cultural oposta e complementar de afirmação de práticas musicais baseadas na convivialidade, na cooperação e na reciprocidade.

noche flamenca 2014

“Noche Flamenca” de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2014.

A etnografia mostra-nos que as festas organizadas pelos municípios rentabilizam os meios materiais e humanos disponíveis e estão orientadas para a inclusão social e a cooperação, através da criação de trabalhos temporários e da valorização de práticas da cultura, como marcadores da memória coletiva. As festas comemoram as identidades e os valores das comunidades e assinalam um tempo de utopia, de alegria e abundância, pela partilha de experiências, de bens e de afectos. Num contexto rural economicamente desarticulado os impactos das festas são muito diversificados, embora exista um denominador comum na predisposição colectiva para se viver a festa como um tempo de esperança contra as incertezas do futuro. A “sociabilidade festiva” como experiência colectiva é fundamental à transmissão de valores e de saberes, e como ponto de convergência de pessoas em torno de atividades musicais significantes, que resistem aos modelos de turistificação e mercantilização da cultura.

noche flamenca Barrancos, 2015

“Noche Flamenca” de Barrancos, 2015

Num contexto rural e fronteiriço as práticas musicais entrelaçam a dimensão micro das relações de vizinhança com a dimensão macro de uma sociedade globalizada. As celebrações musicais dos grupos corais e dos grupos de sevilhanas promovem uma imagem do lugar para o exterior, como imagem de marca de atributos culturais que não dissociam a música de uma cultura baseada na convivialidade e na reciprocidade, como valor de pertença a um “lugar social” por oposição aos “não lugares”(Augé 2005). Um lugar social individualizado no espaço e no tempo, pertencente a um mundo global, que permite o desenvolvimento da criatividade e a construção de utopias que atribuem sentido e significado à vida de pessoas que participam na construção de futuros possíveis.

 

Referências bibliográficas:

Alguacil Gómez, Julio. 2005. “Los desafíos del nuevo poder local: la participación como estrategia relacional en el gobierno local”. Polis (12): 2-17.

Aramberri, Julio. 2011. Turismo de masas y modernidad. Un enfoque sociológico. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas.

Augé, Marc. 2005. Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora.

Clifford, J. 2000. “Taking Identity Politics Seriously: ‘The Contradictory, Stony Ground”. En Without guarantees: in honour of Stuart Hall, eds. Paul Gilroy, Lawrence Grossberg y Angela McRobbie, 94-112. London/New York: Verso.

Duvignaud, Jean. 1984. Fêtes et civilizations. Paris, Scarabée & Compagnie, 2ème édition.

Getz, Donald. 2010. “The nature and scope of festival studies”, International Journal of Event Management Research, Volume 5, Number 1.

Gibson, Chris. y Connell, John. (eds.). 2012. Music, Festivals and Regional Development in Australia. Ashgate.

Harvey,  David. 2007. Breve historia del neoliberalismo, AKAL.

Hernández-Ramírez, Javier. 2015. “Turismo de base local en la globalización”. Revista Andaluza de Antropología (8): 1-18.

Jeudy, Henry-Pierre. 2008. La machinerie patrimoniale. Paris: Circé.

Jepson, Allan. y Clark, Alan. (eds.). 2015. Exploring Community Festivals and Events. London/New York: Routledge.

Lowenthal, David. 1998. The heritage cruzade and the spoils of history. Cambridge: Cambridge University Press.

Mauss, Marcel. 2001. Ensaio Sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70.

Prats, Llorenç. 1998. “El concepto de patrimonio cultural”. Política y Sociedad (27): 63-76.

 

(Comunicação apresentada ENIM 2016- VI Encontro Nacional de Investigação em Música, que se realizou na Universidade de Aveiro de 3 a 5 de novembro de 2016. Programa: http://www.spimusica.pt/wp-content/uploads/2016/05/Programa-ENIM-2016.pdf)

 

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