Práticas da Cultura na Raia do Baixo Alentejo. Utopias, criatividade e formas de resistência

O trabalho de investigação que originou o livro Práticas da cultura na raia do Baixo-Alentejo. Utopias, criatividade e formas de resistência, deveu-se à bolsa de pós-doutoramento em Estudos Artísticos, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, atribuída ao projecto “A cultura expressiva na fronteira luso-espanhola: continuidade histórica e processos de transformação socioculturais, agentes e repertórios na construção de identidades”, com orientação científica da etnomusicóloga Salwa Castelo-Branco (Universidade Nova de Lisboa) e do politólogo Heriberto Cairo (Universidade Complutense de Madrid). Do trabalho de campo desenvolvido de forma descontinuada, entre 2013 e 2019, nos municípios de Moura, Barrancos, Serpa e Mértola, resultou num conjunto significativo de registos audiovisuais: (https://www.youtube.com/channel/UCAHMEXdMhzMmlHc_3dT2C1w/videos?view=0&sort=dd&flow=grid)  

O objectivo central do livro é compreender as práticas da cultura, na tensão progressiva entre a política de possibilidades dos agentes locais, empenhados na valorização e salvaguarda dos bens culturais das suas comunidades, e o projecto político neoliberal de mercantilização de tudo, que determina e condiciona a futuro das sociedades. A obra, dividida em seis capítulos, parte das inquietações do presente para interrogar as relações entre a história, a memória, o património e as práticas culturais que ao longo do tempo conformaram a identidade cultural desta região, a que o canto polifónico alentejano deu voz (cap. 1). Neste sentido, detém-se no processo de folclorização do canto polifónico alentejano, centrada nas relações de poder entre instituições, eruditos e praticantes, a partir do cruzamento de fontes orais e documentais (cap.2).  No sentido de contribuir para o Plano de Salvaguarda do Cante Alentejano atribui visibilidade aos grupos corais e autores mais emblemáticos de Barrancos, inserindo-os em contextos políticos e sociais concretos (cap. 3). No cap. 4 debruça-se sobre as transformações da sociedade rural desde a Revolução de Abril até ao presente, entrelaçando as políticas de salvaguarda do património cultural com o movimento coral alentejano, as assimetrias entre os actores emergentes no processo de patrimonialização e pós-patrimonialização do Cante e as práticas desenvolvidas por diversos agentes locais (cap. 4). No cap. 5, questiona os processos de produção e transmissão de imaginários culturais, a partir de um conjunto de festas que reforçam o sentido do comum e estimulam a criatividade social, para além de contribuírem para o desenvolvimento económico e humano das sociedades rurais.

ÍNDICE

Notas & Agradecimentos

Prefácio de Salwa Castelo-Branco

1. Introdução a um passado presente, em modo de alegoria

1.1. O Alentejo da Margem Esquerda em projecto.

1.2. Tu cantas à espanhola e também à alentejana.

2. O canto polifónico alentejano: experiências e expectativas

2.1. O Estado Novo: dominação e propaganda pelo folclore.

2.2. As Casas do Povo: doutrinação ideológica e resistência política.

2.3. A “educação para o povo”, na domesticação dos corpos e das mentes.

3. A institucionalização dos grupos corais e a promoção do Alentejo

3.1. A formação do grupo coral da Casa do Povo de Barrancos.

3.2. O imaginário cultural de António Xarrama Rodrigues (Cumbreño).

3.3. Os universos musicais de Manuel Torrado Marcelo (Chicuelo).

4. A Revolução de Abril e os horizontes de esperança

4.1. A contra-Reforma Agrária e a politização dos grupos corais.

4.2. O canto no feminino: formas de sociabilidade e de emancipação social.

4.3. O Património Cultural Imaterial e a mercantilização da cultura.

5. As festas, as músicas e os imaginários culturais

5.1. O ciclo festivo em Barrancos, entre o passado e o futuro.

5.2. Os imaginários do flamenco: para buscar al duende no hay mapa.

5.3. As Estudantinas da Amareleja, na “sociedade do espectáculo”.

5.4. Dicen las sevillanas que San Isidro es novio de la Virgen de las Paces.

5.5. O tamborileiro faz falta, é o anúncio da Festa!

5.6. Encontros de culturas em Serpa e Mértola: utopias e formas de reinventar o mundo.

6. Algumas considerações sobre a cultura de uma região em projecto

Posfácio de Heriberto Cairo

Referências bibliográficas

Anexos

https://www.edi-colibri.pt/Detalhes.aspx?ItemID=2630

Memórias e práticas musicais – o tamborileiro em Santo Aleixo da Restauração (Baixo Alentejo).

As fontes históricas e iconográficas portuguesas mostram-nos, desde a Idade Média, a presença do tamborileiro em contextos festivos e cerimoniais. O conjunto flauta e tamboril está ainda localizado nas zonas fronteiriças das Terras de Miranda (Trás-os-Montes) e no Baixo Alentejo, na Marguem Esquerda do Guadiana. A partir da segunda metade do século XX, esta prática musical sofreu um significativo decréscimo quantitativo e qualitativo, comparativamente a décadas anteriores. O seu estudo também mereceu pouca atenção académica, e deve-se a Ernesto Veiga de Oliveira e a Benjamim Pereira a recolha e gravações realizadas na década de 1960, a Michel Giacometti os registos da década de 1970, e à Associação Pé de Xumbo os estudos no site “Flauta do tamborileiro no Alentejo”; http://tamborileiros.pedexumbo.com/.

Este site mereceu a atenção de Cyril Isnart (2013) que o caracterizou como o resultado “da pesquisa documental de um tocador de tipo revivalista”, Diogo Leal, que reuniu um conjunto de documentos originais, de fotografias, vídeos, arquivos, partituras e textos analíticos. A pesquisa apresentada, segundo a trama das monografias etnomusicológicas clássicas, e das indicações habituais das páginas de internet, transformou o tamborileiro em algo patrimonial, ou seja, “inscrito num regime de valor coletivo da música popular antiga e atual, a um nível bem mais elevado do que antes da sua exposição patrimonial” (Isnart 2013: 10).

No Baixo Alentejo, as funções do tamborileiro permanecem vinculadas às festas religioso-populares e aos peditórios das Comissões de Festa. Em Santo Aleixo da Restauração o tamborileiro está associado às festas de Santo António e da Tomina, assim como aos peditórios de Santo António e Santa Maria, com uma função cerimonial que perdeu ao longo do tempo a sua componente musical. António Maria Cuco (1901-1976), conhecido por “O Estragado” foi o primeiro tamborileiro a ser fotografado e gravado por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, em 1961, para a obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses. Em 1965 o tamborileiro António Oliveira Lopes (1915-1984), conhecido por “Guinapo”, foi gravado por Michel Giacometti para o 6º episódio da série documental “Povo que Canta”, dedicado aos tamborileiros do Baixo Alentejo: http://www.youtube.com/watch?v=eWxs_GVgZzE.

Na obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Benjamim Pereira assinala a sua experiência de terreno ao recordar António Maria Cuco nos seguintes termos.

“Recordo a visita à casa do tamborileiro António Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restauração, a sua extrema modéstia e esmero, de uma só divisão, com chão de xisto límpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a cozinha na superação rara dos sinais do fogo, a um dos lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo. Neste cenário da maior simplicidade destacava-se uma pequena arca de pinho que o António Maria abriu pondo a descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem precioso, o pífaro que agora integra esta colecção”.

Foto do tamborileiro António Maria Cuco, em Instrumentos Musicais Populares Portugueses

Na actualidade os tamborileiros de Santo Aleixo da Restauração são recordados em diferentes grupos familiares. Em Agosto de 2014, na mesma casa modesta citada no texto de Benjamim Pereira conversei com Maria Eugénia, filha de António Maria Cuco, residente nos arredores de Lisboa desde a década de 1970, que em Agosto regressa sempre à terra onde nasceu para assistir à Festa da Tomina.

Nasci no dia de Santa Maria, que era o dia do peditório, e então ele, sempre ouvi dizer que foi com a bebedeira de eu ter nascido que comprou o tambor. Lembro-me sempre dele em chegando a este dia, começava logo a arranjar o tambor. Porque ele quando chegava a casa, o tambor tinha umas cordas à volta e assim que chegava a este dia ele começava a apertá-lo, a apertá-lo e a experimentá-lo, e ele é que fazia as gaitas. Arranjava madeira e fazia as gaitas, e tocava muito bem, não há ninguém que toque como ele tocava, não há ninguém. E dava uma organização, não é por ser meu pai, mas dava uma organização muito grande na festa, dizia aos rapazes “vocês fazem, assim e assim” e agora cada um faz, agora já não é nada. Era uma coisa que ele fazia com gosto. Ganhava, parece que eram 20 escudos que ganhava, tocava dois dias, porque na altura a festa não eram tantos dias. Ele fazia assim, agora quem dá a Alvorada é a música, o meu pai saía daqui tocando o tambor de madrugada, toda a gente já sabia que ia ali o tamborileiro, tocando tum tum, tum tum, mas ele tocava muito bem. (…) Sei que vieram uns senhores aí a gravar, veio aqui o senhor Arlindo, levou-o para aí e estiveram a gravar. O meu irmão ainda tocou, tocava bem, mas não tocava como ele, mas tocava melhor que o Guinapo. O meu irmão ficou com o tambor, depois é que passou para esse senhor que era o Guinapo (Maria Eugénia, filha do tamborileiro António Cuco, irmã do tamborileiro Joaquim Grilo).

Maria Eugénia Cuco

António Maria Cuco com os netos

O “Toque do tamborileiro” executado por António Maria Cuco faz parte da colecção dos Arquivos Sonoros (http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo240.mp3), que serviu de base à obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, e permanece ainda na memória dos mais idosos, como testemunhou o mestre Bento Figueira:

Antigamente havia um homem que se chamava tio António “Estragado” que era o tamborileiro, que esse é que era um homem, um profissional naquilo. Tinha uma música mesmo adequada aquilo, e o compasso, de forma que aquilo tocava bem e é sempre o que vai á frente da festa, tocando tambor e dando aquela coisa com aquele apitosinho, com uma gaita, uma gaita de madeira. Tinha aquele toque, dava-lhe duas ou três partes, mas era sempre a mesma coisa (Bento Figueira, à data mestre do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração).

mestre Bento Figueira

A sonoridade dos toques dos tamborileiros transcende a componente musical, ou seja, está principalmente associada a significados e práticas rituais que organizam o pensamento e a ação dos indivíduos para o tempo festivo, como testemunharam as pessoas com quem conversei:

O tamborileiro faz falta, é o anúncio da Festa. Porque nós quando ouvimos aquele toque do tambor tum, tum tum, aquela coisa, olha já ai vem a festa, já aí vem a procissão, já aí vem o guião do peditório de Santo António, ou o peditório da Santa Maria, e é pelo tum tum do tambor, e quando era o ti António “Estragado” ouvia-se tanto o tum tum do tambor como o apito da gaita. O tamborileiro é isso, para ir à frente da Festa sempre. Esse tem que saberás ruas todas por onde a Festa tem de passar (Bento Figueira, mestre do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração).

Tamborileiro António Maria Cuco

Gostava de ver o meu pai nisso. O meu pai vinha na sexta-feira, tal como no dia de amanhã, começava já amanhã. O tambor estava na igreja, e o meu pai vinha sexta-feira à tarde par ir buscar o tambor à igreja para ir buscar os guiões à casa dos festeiros, para depois vir com os guiões para a igreja. E depois à tarde, quando vestem a Santinha (N. Srª. das Necessidades), o meu pai ficava na igreja a guardar a Santa, toda a noite, com os Festeiros e com a Guarda (GNR). Sexta toda a noite, sábado todo o dia até à hora da procissão, o meu pai não descansava, porque tinha de apanhar o tambor e ir na procissão. Depois, quando recolhia a procissão, sábado à noite, o meu pai ficava a guardar a Santa, porque a igreja estava aberta, até domingo à tarde que acabasse a outra procissão, mas nós gostávamos. O meu pai tinha muito gosto nisto, depois já começou com a idade, e a minha mãe já nem queria que ele andasse, já era muito cansativo para ele, e depois deixou, deixou a outro. (…) Chama as pessoas à porta, porque a gente ouve o tambor vai à porta, se já se ouve o tambor já aí vem o guião, como no dia da procissão. Gosto de ouvir, significa muito para mim, porque foi uma coisa que passou pelo meu pai, gosto de ouvir (Maria Castro Lopes, filha do tamborileiro Manuel Fialho Lopes).

Maria Castro Lopes

tamborileiro Manuel Fialho Lopes

Isto geralmente é para dar o alarme ao Povo, para as pessoas saberem que anda o guião, que andam as procissões pela rua., porque isto, ninguém vai aprender a fazer nada disto (Mariana Felícia Limpo, filha do tamborileiro António Oliveira Lopes, “Guinapo”).

Mariana Felícia Limpo

tamborileiro António Oliveira Lopes, “Guinapo”

Na festa da Tomina de 2014, António Grilo (Santo Aleixo da Restauração, 1975), neto de António Maria Cuco e filho do tamborileiro Joaquim Grilo “o Ficalheiro” desempenhou pela primeira vez a função de tamborileiro, para manter a tradição.

É um trabalho que eu nunca fiz, de tamborileiro. Apesar do meu pai e do meu avô fazerem eu nunca fiz, mas todos os anos trabalho para a Tomina, todos os anos tenho o meu ordenado e eles todos os anos me vão chamar e agora pediram-me “- É pá Grilo, podes desenrascar a gente? Foi o que eu disse ali dentro: “-Não tens mais ninguém, não te preocupes, eu vou!” (António Grilo, neto de António Cuco e filho de Joaquim Grilo).

As festas associadas a uma sociedade rural que se transformou, modernizaram-se, e são concebidas cada vez mais em função de práticas e consumos urbanos, na abordagem religiosa/profana e nas sonoridades musicais que se mesclam, mas ainda preservam componentes rituais que permitem ler o contexto rural. As funções do tamborileiro estabelecem uma narrativa tradicionalmente definida, independentemente do esvaziamento das funções rituais e da formação musical dos executantes. Como afirmou mestre Bento Figueira: “o tamborileiro faz falta, é o anúncio da Festa”, e desta forma cumpre a função de reordenar o tempo festivo e restabelecer, simbolicamente, a relação dos homens e das mulheres com os ciclos da natureza, como herança cultural preservada.

Festa da Tomina, 2014.

 

Referência Bibliográficas:

Isnart, Cyril. 2013. ’Contra danças não há argumentos’: A dança entre património e moral no âmbito de uma associação cultural portuguesa. Revista Memória em Rede, 8.

Veiga de Oliveira, Ernesto. 2000. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. Fundação Calouste Gulbenkian.

Agradecimentos:

António Grilo

Bento Figueira

Comissão de Festas da Tomina, 2014

Isabel Balancho

Mariana Felícia Limpo

Maria Castro Lopes

Maria Eugénia Cuco

 

 

As mulheres e o cante alentejano: processos, práticas e imaginários futuros

O processo de institucionalização dos grupos corais masculinos como representações da cultura expressiva alentejana, marginalizou as mulheres da prática formal do canto, mas não as impediu de cantar. Na sequência do contexto revolucionário de 1974 surgiu o primeiro grupo coral feminino, mas foi a partir da década de 1990 que as mulheres conquistaram o espaço público (Cabeça e Santos, 2010). A partir de uma etnografia extensiva e intensiva realizada na raia do Baixo Alentejo, entrelaçada com fontes documentais e bibliográficas trago ao debate a “cultura popular” como construção social em permanente actualização, para questionar os processos que atribuem visibilidade e invisibilidade a práticas musicais, tomando por eixo central a acção das mulheres na preservação do cante alentejano.

(…) eu ouvia sempre com muito agrado o canto das ceifeiras de Serpa, pela madrugada. Na verdade não sei de coisa mais bela no seu género. As ceifeiras formavam rancho, juntando-se num ponto da vila, às vezes no lado oposto àquele para onde tinham de seguir e, enquanto atravessavam a vila, iam sempre a cantar. Uma fazia alto, geralmente a que cantava melhor, e as restantes, distribuindo as vozes, faziam o coro. Ninguém ensinou as ceifeiras a cantar, mas o certo é que o seu canto tem muita arte. Num outro país que não fosse Portugal dominado pelo fascismo, o canto das ceifeiras de Serpa ter-se-ia tornado conhecido por todo o país e por muitos pontos do mundo (Francisco Miguel, Uma vida na Revolução, 1977: 27).

A noção de “cultura popular” conceptualizada no âmbito dos estudos folclóricos do século XIX, representa na actualidade o resultado dinâmico da intersecção de vários processos de construção social que a transformaram numa categoria analítica, ideológica, política, simbólica e social. Como nos recorda Jacques Revel (1989: 47) a cultura das elites moldou a “cultura popular” que melhor se ajustava ao contexto político de cada época, com o propósito de não a negar, mas de mostrar as relações estratégicas entre os atores sociais que agem por detrás da constituição das identidades culturais.

(…) A cultura popular é rebelde em defesa do costume (…) contra as intromissões das elites e do clero (…) consolida os costumes que servem os interesses de uma classe subalternizada (…) não era fatalista, antes oferecia consolo e defensas para o curso de vidas totalmente determinadas e restringidas (Thompson, 1979: 50).

(…) a cultura popular teve de ser censurada para passar a ser estudada e tornar-se objecto de interesse (…) o prazer experimentado pela auréola “popular”, que cobre melodias inocentes está precisamente na base de uma concepção elitista da cultura (Certeau e Julia, 1989: 53).

(…)  nação deveria possuir um passado (…) comum, (…) uma cultura popular nacional, e coube aos etnógrafos e eruditos locais a fixação desses requisitos, numa versão autorizada e intemporal do povo enquanto essência da nação (Leal, 2000: 18).

Durante a ditadura portuguesa [1933-1974] a ofensiva moralizadora da Igreja e do Estado conduziu a um vasto processo de disciplinação e doutrinação pelo folclore, como instrumento funcional de coação ideológica e “domesticação” do camponês, detentor das marcas singulares da identidade nacional. A partir de 1933 o Estado Novo controlou todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações politicas, sociais e culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. A organização corporativa e a diversidade dos seus organismos, primários e intermédios, serviram como instrumentos centrais de doutrinação ideológica, vigilância política e padronização de comportamentos quotidianos, no trabalho e no lazer, como aparelho central do controlo totalizante da sociedade portuguesa. A “cultura popular” como essência da nacionalidade, e a propaganda como meio eficaz à difusão da retórica nacionalista envolveram um conjunto de actores sociais, instituições e organismos corporativos fundamentais à difusão do ideário do regime. A partir da década de 1940 estabeleceu-se uma relação de dominação com os ranchos folclóricos através das Casas do Povo, na selecção de repertórios e trajes, e no controlo dos seus elementos por parte de delegados da FNAT, que moldaram os grupos corais masculinos alentejanos à forma que hoje conhecemos.

Organismos de doutrinação pelo Folclore

  • Casas do Povo, 1933.
  • Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), 1933; Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) a partir de 1945.
  • Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) (1935-1974).
  • Programas da Emissora Nacional: Alegria no Trabalho” (FNAT), e “Serão para Trabalhadores” (1941-1974).
  • Junta Central das Casas do Povo (1945-1974.
  • Gabinete de Etnografia da FNAT,
  • Mensário da Casa do Povo (1946-1971).

A “Alegria” como construção ideológica enquadrada na doutrina corporativista do Estado Novo, encontrava nos programas da Emissora Nacional “Alegria no Trabalho” e “Serão para Trabalhadores” um poderoso meio de difusão da ideologia fascista, por meio de sessões de propaganda política da União Nacional e do entretenimento. Segundo o seu mentor, António Ferro, “toda a alegria é assim possível, mais ainda necessária, desde que atrás dessa alegria exista uma doutrina séria, uma finalidade a atingir” (Ferro cit. em Moreira, 2012: 97). Neste contexto, a “cultura popular” devia ser comemorada através de festivais de folclore, concursos de cantares e espectáculos direccionados “para o embelezamento de um país visto como uma realidade de natureza cénica” (Leal, 2000: 58). O primeiro espectáculo de cantares alentejanos foi organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo) a 22 de Março de 1937 no Teatro São Luís, em Lisboa, para as elites da capital, e contou com a presença do Ministro da Educação Nacional e do director da Emissora Nacional. No sarau actuaram os Ranchos de Cantadores de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). A Casa do Alentejo teve sempre um papel relevante na inscrição da “província nas políticas do Estado português, e na construção de um imaginário dos usos e costumes do ‘ser português”, como bem assinalou a etnomusicóloga Maria do Rosário Pestana (2014: 23).

Foto do Sarau publicada no Diário do Alentejo, de 25 de Março de 1937.

Troféu oferecido aos grupos participantes, 1937.

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A institucionalização dos grupos masculinos marginalizou as mulheres do cante formal, e um conjunto de traços associados a esta prática colectiva desapareceram, nomeadamente os grupos mistos, o acompanhamento com instrumentos musicais (viola campaniça, harmónio e pandeiro) e o baile. José Alberto Sardinha (2001) diz-nos que não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar, e que os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar. Segundo este autor “a polifonia tradicional do canto alentejano só tinha uma regra fixa no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto” (2001: 29). As vozes femininas estavam ainda presentes na recolha realizada pelo folclorista Armando Leça junto de ranchos do Baixo Alentejo (1939-1940). As gravações cumpriam uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade (1140) e o terceiro da Restauração (1640). O registo em fita magnética ficou a cargo da Emissora Nacional, mas a edição discográfica não chegou a realizar-se, devendo-se ao estudo de Maria do Rosário Pestana (2014) a recuperação do espólio e gravações de Armando Leça, importante contributo tanto para as comunida­des de origem, como para músicos, estudiosos e público em geral.

Rancho Misto de Vila Verde de Ficalho que se apresentou a 30 de Novembro de 1940 na conferência “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, proferida por Armando Leça no Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), em Lisboa.

As vozes das mulheres conquistam o espaço público após a Revolução de Abril de 1974, com os grupos corais a alargarem os espaços de actuação a comícios e manifestações dos trabalhadores. No Alentejo formaram-se novos agrupamentos associados a Unidades Colectivas de Produção e surgiu o primeiro grupo coral feminino “Flores de Ervidel” em 1979 no contexto da Reforma Agrária. Ao ocuparem as terras e organizarem-se em unidades colectivas de produção homens e mulheres envolveram-se pela primeira vez na vida social e política das suas vilas e aldeias, e criaram novas cantigas que correspondiam ao sentimento de esperança que cimentava a Revolução de Abril. Com o apoio das autarquias os grupos criaram-se novos modelos de espectáculos – os Encontros de Grupos Corais – que substituíram os antigos concursos de Cantares Alentejanos organizados pelo SNI.

A partir da década de 80, com a destruição da Reforma Agrária e a implementação da política agrícola europeia, abandonaram-se as cantigas de intervenção social. No Alentejo e na Diáspora os grupos cantavam a terra, e reassumiam os modelos de “autenticidade” ditos tradicionais. Os repertórios cristalizaram-se a favor da revitalização da performance, por meio de trajes que remontam a “uma espécie de universo mítico de enunciação”. Assistiu-se a um processo de “re-folclorização” desenvolvido por autarquias e outras instituições de âmbito local e nacional, mediado por estudiosos e promotores locais. A re-folclorização trespassou as fronteiras da ruralidade e transformou-se num fenómeno urbano, com o número de grupos a aumentarem, e as mulheres a cooperarem activamente, animadas de um forte sentido lúdico e participativo. Em 1998 o inquérito realizado pelo Instituto de Etnomusicologia aos grupos de música tradicional dava conta da existência de 10 grupos femininos num total de 164 grupos de cante alentejano. Em 2013 o inquérito realizado pela Universidade de Aveiro aos grupos corais amadores registou a existência de 42 grupos corais femininos alentejanos. Em 2019, segundo o registo da Casa do Cante de Serpa existem 54 grupos femininos e 21 mistos. A formação de novos grupos, femininos e mistos deveu-se ao impacto que a candidatura e inscrição do Cante na lista representativa da UNESCO teve nas comunidades. A inscrição do Cante aumentou a auto-estima e o orgulho das pessoas envolvidas neste modo de expressão, como testemunha Leonor Burgos (Barrancos, 1947), coordenadora do grupo coral “Vozes de Barrancos” criado em Janeiro de 2015, por 18 mulheres com idades compreendidas entre os 54 e 78 anos.

(…) O reconhecimento do Cante a Património da Humanidade também teve muita influência, porque Barrancos sempre cantou, havia aqueles grupos que cantavam tão bem e agora não há ninguém a cantar, quando sempre houve aqui a tradição de cantar espanhol e alentejano. E foi também por isso que eu me lembrei disto, porque temos de continuar e temos de o manter. (…) Eu sempre cantei, na minha casa se cantava muito quando eu era nova e aprendi, aprendi, e a vontade de cantar foi sempre muita (Leonor Burgos, Barrancos, 27. 04. 2015).

Grupo coral feminino “Vozes de Barrancos” com a Drª. Isabel Sabino, madrinha do grupo e vereadora da cultura da CMB em 2015.

As mulheres Barranquenhas

(autoria do grupo)

(…)

Nós mulheres barranquenhas

Também sabemos cantar,

Agora com mais idade,

Temos um grupo coral.

 

Temos um grupo coral,

Foi esse o nosso destino

Em Barrancos nunca houve,

Um grupo tão feminino.

 (…)

A participação das mulheres transcende a prática do canto como actividade lúdica e criativa, no desempenho de tarefas organizativas e de divulgação dos grupos dentro e fora das suas localidades, apoiadas em redes informais tecidas nas comunidades. Das suas actividades destaco a organização anual de Encontros de Grupos Corais destinados a festejarem o aniversário dos grupos. Do conjunto de Encontros observados realço o de Vila Verde de Ficalho, organizado pelo grupo coral feminino “Flores do Chança”, formado em 2008 por vinte e uma mulheres, com idades compreendidas entre os 35 e os 80 anos de idade, que segundo a sua coordenadora Margarida Castelhano, “começou por brincadeira, mas o povo gostou tanto que passou a ser sério”. Treze das cantadeiras são desempregadas de longa duração e sete estão reformadas. Nas suas actividades quotidianas desdobram-se em tarefas domésticas, no apoio aos filhos e netos, em trabalhos precários e na prática do Canto, com ensaios semanais e espectáculos aos fins-de-semana. Para além dos convites para actuarem noutras localidades, em função das redes construídas ao longo do tempo, participam em todas as festas da vila, cantando e angariando fundos por meio de quermesses. A organização do Encontro depende do trabalho voluntário destas mulheres, que procuram os apoios necessários à sua concretização junto da Câmara Municipal de Serpa, Junta de Freguesia de Ficalho e da Caixa de Crédito Agrícola. Os grupos participantes são convidados com meses de antecedência, segundo uma lógica de reciprocidade. Isto significa um sistema de trocas entre iguais, em que a obrigação de retribuir é imperativa, fortalecendo-se na troca as relações sociais estabelecidas. Feitas as compras necessárias ao jantar oferecido no final do Encontro aos participantes e convidados e contratada uma vizinha como cozinheira, as cantadeiras asseguram a organização da cozinha, o arranjo da sala multiusos cedida pela Junta de Freguesia, as ofertas e recepção aos grupos convidados que acompanham no desfile pelas ruas da vila. A liderança destas mulheres provém da intensidade do compromisso com as comunidades, de superarem desafios e imaginarem futuros, para além das limitações e das dificuldades da vida quotidiana. O “espírito empreendedor” não se inscreve na lógica empresarial capitalista, antes numa economia alternativa de trocas simbólicas, baseada na cooperação, na interdependência e na reciprocidade, que como afirmou Polanyi, “são mais necessárias à existência humana do que os princípios de mercado que desenraízam e desumanizam” (Polanyi, cit. Eriksen 2016: 206). Neste sentido, os Encontros não são espectáculos musicais direccionados para o turismo, antes celebrações de fruição local que não dissociam o canto de uma cultura incorporada, como valor de pertença a um “lugar social”, com significado identitário, relacional e histórico, pertencente a um mundo global.

Jantar convívio no final do Encontro, 2015.

Grupo coral “Flores do Chança”, 2015.

A ideia de mundialização do Cante veio criar expectativas diferenciadas nos actores sociais envolvidos no processo de patrimonialização. Os promotores direccionam-se para a internacionalização do património cultural português, e a oportunidade de interacção do Cante com outras tradições polifónicas do mundo. As entidades públicas e privadas orientam as suas expectativas para a valorização da região do Alentejo, como produto posto em valor ao serviço do turismo. Os “portadores da tradição” partilham as mesmas expectativas de Margarida Castelhano (Vila Verde de Ficalho, 1947):

(…) Acho que agora tem mais valor o nosso cante, que antigamente já tinha valor para nós, mas agora é uma coisa diferente, é uma coisa mais divulgada no mundo inteiro. Penso que amanhã teremos melhores condições (…) espero que agora tenhamos mais privilégios, de gravar um CD, espero bem que sim. Tenho esperança que a gente vá divulgando o cante, que chegue mais longe e consigamos ir lá fora, não é irmos só aqui a terras pequeninas. (Margarida Castelhano, Ficalho, 23. 05. 2015).

O futuro dos grupos depende dos meios e dos materiais culturais que dispõem, das redes de relações que construíram, das posições sociais que ocupam nas suas comunidades, e do poder das comunidades a nível regional e nacional. Em contextos rurais envelhecidos e economicamente desarticulados o potencial do canto como recurso cultural sustentável é fundamental ao desenvolvimento humano (Turino 2009), porque não só as pessoas o sustêm, como ele sustem as pessoas. A gestão desta herança cultural implica a criação de modelos participativos, através de uma acção consertada entre grupos, autarquias e membros da comunidade. A salvaguarda do canto depende das condições de habitat em que as pessoas podem continuar a desenvolver as suas actividades, de distintas formas e por múltiplas razões. Como saber musical vinculado a memórias colectivas e práticas alimenta-se da criatividade, componente necessária à construção de imaginários e narrativas que atribuem sentido e significado à vida das pessoas, como Maria Rosa Campaniço, cantadeira do grupo “Flores do Chança”, transmite nos versos da moda que dedicou ao Cante em 2017:

(…)

Damos louvores a quem canta
Para todo o mundo alegrar
Nessas lindas melodias
Mostramos a nossa alegria
E o gosto pelo cantar.

Pomos a alma na voz
Alegram-se os corações
Tanta voz junta a cantar
Sem nenhuma destoar
Cativando as multidões.

O futuro do canto alentejano como expressão cultural e prática colectiva reside na poesia, como narrativa de vida identificada por Michel Giacometti, quando afirmou que “os cantos alentejanos actualizam as letras que frequentemente reflectem (…) os problemas, as tensões e as situações sociais do momento. (…)” (Giacometti, em Oliveira, 2017: 174). O futuro do Cante como património entrelaça-se no processo de re-socialização das práticas e das políticas, que a sociedade necessita na actualidade (Criado e Barreiro, 2013). O desafio reside em converter o campo patrimonial num activo campo de agenciamento social alternativo e contra-hegemónico, através do reconhecimento dos processos de participação social e de modelos de gestão e socialização de práticas que permitem construir o futuro.

Referência bibliográficas

Alves, Vera. 2013. Arte Popular e Nação no Estado Novo. A Política Folclorista do Secretariado de Propaganda Nacional. Lisboa: ICS.

Branco, Jorge Freitas. 1999. “Autoritarismo Político e Folclorização em Portugal: O Mensário das Casas do Povo (1946-1971)”, in Actas del VIII Congreso de Antropología, 29-45. Santiago de Compostela: Associón Galega de Antropoloxia.

Cabeça, Sónia Moreira e Santos, José Rodrigues dos. 2010. “As mulheres no Cante Alentejano”, in Proceedings of the International Conference in Oral Tradition. Ourense: Concello de Ourense.

Certeau, Michel de, e Julia, Dominique. 1989. “A beleza do morto: o conceito de ‘cultura popular’”. In  A Invenção da Sociedade, coord. Jacques Revel, 49-79. Lisboa: Difel.

Criado, Felipe Criado e Barreiro, David. 2013. “El patrimonio era otra cosa”. Estudios atacameños, 45: 5-18.

Leal, João. 2000. Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Melo, Daniel Seixas de. 2001. Salazarismo e Cultura Popular (1933-58). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

Moreira, Pedro Filipe Russo. 2012. “Cantando espalharei por toda parte”: programação, produção musical e o “aportuguesamento” da “música ligeira” na Emissora Nacional de Radiodifusão (1934I1949). Tese de doutoramento em Ciências Musicais – ramo Etnomusicologia, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Pestana, Maria do Rosário (coord.). 2014. Alentejo: vozes e estéticas em 1939/1940. Edição crítica dos registos sonoros realizados por Armando Leça. Tradisom Produções Culturais.

Oliveira, Luís Tiago de. 2017. “O Alentejo de Michel Giacometti”. In Cantar no Alentejo. A Terra, o Passado e o Presente, coord. de Maria do Rosário Pestana e Luísa Tiago de Oliveira, 151-181.  Estremoz Editora.

Ramos do Ó, Jorge. 1999. Os Anos de Ferro: O Dispositivo Cultural durante a “Política do Espírito”(1933-1949). Lisboa: Editorial Estampa.

Revel, Jacques. 1989. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel.

Sardinha, José Alberto. 2001. A Viola Campaniça: O Outro Alentejo. Sons da Tradição, vol.1, Tradisom Produções Culturais.

Silva, Augusto Santos Silva. 1994. Tempos cruzados: Um estudo interpretativo da Cultura. Porto: Edições Afrontamento.

Thompson, E. P. 1979. Tradición, Revuelta y Conciencia de Clase. Barcelona: Editorial Crítica.

Turino, Thomas. 2009. “Four Fields of Music Making and Sustainable Living”. The World of Music 51, (1): 95-117.

 Notas:

A Missão da Casa do Cante é a salvaguarda do Cante Alentejano, cuja Visão é a Sustentabilidade do Território através da Identidade, e onde os objetivos são criar projetos que autossustentem e valorizem os elementos de uma identidade em constante dinâmica. Disponível: http://www.casadocante.pt/

Vídeos realizados sobre o cante no feminino, durante o trabalho de campo:

III Encontro de Grupos Corais em Barrancos (Baixo Alentejo), 20 de Junho de 2018. URL: https://www.youtube.com/watch?v=NwVzPBvdfCc

Jornadas Cante no Feminino (Casa do Alentejo – Lisboa)”, organizado pelo MDM. Lisboa, 30 de Abril, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=TZtBZVORCmc

Grupo Coral Feminino “Vozes de Barrancos” (Barrancos – Baixo Alentejo), 15 de Março, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=UhGs6kjOqeU

5º Encontro de Coros Femininos Alentejanos (Feijó – Almada), 12 de Março, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=lIKQhZjPqYs

Grupo Coral “Flores do Chança” – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)”, 26 de Maio de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=a8pNqQtOrfM

Encontro de Grupos Corais – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 23 de Maio de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=hbX-gnXcilI

Homenagem ao Cante Alentejano – Barrancos (Baixo Alentejo)”, 26 de Abril de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=yab72LpT6Po

Homenagem ao Cante Alentejano – Amareleja (Baixo Alentejo), 10 de Janeiro de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=jLy85Yn5AqM

 

(Comunicação apresentada nas XVII Jornadas de Cultura Popular. Colóquio: Ofícios, Cantos e Contos, a mulher e a cultura popular , organizado pelo GEFAC, Coimbra, 30 de Março de 2019.)

 

 

Expressões simbólicas de resignificação da fronteira nas festas patronais de Vila Verde de Ficalho e Rosal de la Frontera

A fronteira luso-espanhola representa hoje um espaço recriado pela nova “mitologia turística”, e pelos fluxos de pessoas (turistas e excursionistas) que a transformaram num lugar de diversão e lazer (Cairo et al, 2018). Desde o Tratado de Maastricht (1992) que o turismo foi oficialmente reconhecido como um dos eixos de desenvolvimento nas periferias rurais da Europa, vinculado à promoção de uma consciência regional que refletiria a ambição de promover a integração através das fronteiras internas da União Europeia (Prokkola, 2007: 124). As populações fronteiriças vivem um tempo de novas modalidades relacionais e de “revitalização festiva” (Boissevain, 1992) com “invenções de tradições” (Hobsbawm e Ranger, 1983) por parte dos municípios e agentes culturais, que tentam resistir ao fenómeno ilustrado pelos diagnósticos socioeconómicos da União Europeia que apontam para o envelhecimento e desertificação do território. Em contextos festivos as povoações fronteiriças são ciclicamente reativadas e resignificadas, principalmente em festas patronais representativas de uma “herança cultural” preservada, misturada na atualidade com as transformações sociais que a acompanham. As festas patronais refletem ainda, as construções simbólicas socialmente estabelecidas e partilhadas pelos membros das comunidades, representativas de uma “teia de significados” (Geetz, 1973) que entrelaça maneiras de pensar, sentir, festejar e imaginar o mundo.

As sequências rituais encontradas nas festas patronais das vilas raianas de Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo – Portugal) e Rosal de la Frontera (Huelva – Espanha) servem para questionar as expressões simbólicas de resignificação da fronteira, associadas à construção de “lugares antropológicos” (Augé, 1992) com significados identitários, relacionais e históricos. A resignificação dos lugares só pode ser entendida no contexto festivo, no sentido em que deixam de estar relacionados com a vida ordinária e quotidiana das populações, para se tornarem atributo de entidades religiosas, insígnias de identidades e significantes de relacionamentos e compromissos interpessoais específicos. Os sentidos dos lugares obedecem a sequências rituais mediadas pelos Santos, que destacam o lugar da fronteira e as relações de vizinhança construídas no tempo longo. Nestes lugares convergem atividades religiosas e lúdicas que reforçam a partilha do que é comum às comunidades: como a cerimónia do recebimento na fronteira, o desfile pelas ruas das vilas; os atos devocionais; a saída ao campo; o caminho; a comensalidade; a liturgia; a procissão; a música e o baile. É ao nível do recorte sensível do que é comum às comunidades, nas suas formas de visibilidade e organização que se coloca a questão da construção dos lugares na relação entre as pessoas, os Santos e a música, como cristalização dos desejos, das esperança e dos imaginários partilhados.

As mulheres e os homens que inventam o mundo

A festa da Senhora das Pazes é organizada por uma Comissão composta por pessoas de diferentes géneros, idades e condição social, nomeados pelos festeiros cessantes, no ultimo dia da festa. A lista de nomeados ascende a mais de uma centena de pessoas, que podem aceitar ou recusar a passagem do testemunho. Numa primeira reunião fazem o balanço da festa anterior, mas discutem principalmente o que pode ser melhorado, porque cada Comissão aspira sempre à melhor festa. Numa ampla assembleia de iguais apresentam-se ideias e distribuem-se tarefas em função das experiências e competências formais e informais de cada um. A Comissão dispõe ainda de instalações, graciosamente cedidas pela Junta de Freguesia, para reuniões e organização de eventos ao longo do ano. A Romería de San Isidro é organizada por um grupo de vinte pessoas de diferentes géneros e idades membros da Hermandad, uma associação formalmente estruturada e hierarquizada com personalidade jurídica, cujo regime de sucessão hereditário foi substituído pela votação pública de listas, apresentadas por grupos de amigos, de quatro em quatro anos. O presidente e os membros da Hermandad são laicos outorgados pelas autoridades eclesiásticas a darem culto à imagem de San Isidro na capela paroquial e na ermida. Para a organização de festas e espetáculos ao longo do ano possuem bens patrimoniais na vila, para além da Casa da Hermandad junto à ermida no campo, destinada a acolher os participantes da festa. Em ambos os casos a maioria dos organizadores não residem em Ficalho nem em Rosal, trabalham e estudam nas cidades mais próximas, ou nas capitais dos respetivos países e outros estão emigrados em países europeus. Mas a distância não os impede de participar e contribuir para as respetivas festas, com os seus saberes e redes de conhecimento. Aos fins-de-semana ou nos períodos de férias anuais, em função da disponibilidade de cada um, colaboram ativamente na organização, na angariação de fundos e durante as festividades  Estes coletivos asseguram a continuidade de uma tradição religiosa-popular, por meio da partilha de experiências, materializadas em diversas iniciativas realizadas ao longo do ano, que permitem custear a contratação de agrupamentos musicais e do fogo-de-artifício que animam e prestigiam as festas.

Comissão de Festas de Ficalho, 2014.

Hermandad de San Isidro, 2014.

A eficácia simbólica dos Santos unificadores

O culto à Senhora das Pazes conta-nos uma história convertida em Lenda, que em tempos remotos, num confronto militar entre portugueses e espanhóis pela defesa das suas fronteiras, surgiu um vulto entre os soldados de ambos os lados, reconhecido como uma visão da Virgem. Daí nasceu a nomeação da Senhora das Pazes, no sentido da reconciliação, de estar em Paz com. Nesse lugar, junto ao rio Chança, que delimita a fronteira luso-espanhola, foi construída no séc. XVI uma ermida, que se transformou num lugar de culto e peregrinação de portugueses e espanhóis. A institucionalização da romaria no séc. XVIII deveu-se à intervenção da 2ª Condessa de Ficalho em pagamento de uma promessa, na sequência de uma contenda entre os seus filhos e os fidalgos de Aroche (Huelva). A Lenda cristalizou-se num mito unificador das comunidades raianas, ciclicamente renovado por meio de rituais, símbolos e expressões musicais.

A romaria de San Isidro foi criada em 1942 pelo pároco de Rosal de la Frontera, para unificar uma comunidade rural profundamente fraturada pelas consequências da repressão franquista durante e após a guerra civil espanhola. O culto popular ao Santo madrileno remonta historicamente aos finais do séc. XII, apesar da beatificação e reconhecimento institucional só ter ocorrido no séc. XVII. San Isidro foi um símbolo religioso útil ao poder municipal de Madrid para cimentar a imagem da nova capital do Império Hispânico, que albergava a corte, para além de um grupo heterogénico de habitantes e forasteiros, muçulmanos e cristãos. A construção social e institucional do Santo, a partir do séc. XVI, como humilde lavrador, nascido numa família de cristãos mozárabes, devoto, solidário e milagreiro, redundou numa aparente coesão religiosa, útil a um poder interessado em consolidar a coesão social (Zozaya Montes, 2011: 12).

Procissão no campo à Senhora das Pazes, 2014.

Procissão no campo a San Isidro, 2014.

  Resignificação simbólica dos lugares no cerimonial de recebimento

O lugar designado por “Azinheira dos Guiões”, situado no limite da vila de Ficalho junto à estrada internacional, representa um lugar com significado. A azinheira centenária que o nomeou já não existe, excepto na memória coletiva, o espaço envolvente é hoje ocupado por um posto de gasolina e um restaurante com parque de estacionamento, que preenchem as necessidades da vida quotidiana das populações. No contexto festivo, este lugar liminar adquire significado identitário e relacional, por meio do cerimonial de recebimento da Comissão de Festas de Ficalho aos grupos de festeiros e respetivos guiões das povoações vizinhas, convidados para a festa. Por meio de um ritual em que os guiões se tocam, trocam-se gestos e sentimentos fraternos, canta-se e renovam-se as relações de vizinhança. A Hermandad de San Isidro retribui o recebimento no “lugar da aduana”, que marca o limite da vila e recorda o poder do Estado na fronteira. A aduaneira foi desativada com a abertura das fronteiras, e o espaço reabilitado como posto de controlo da Policia de Transito. No contexto festivo representa o lugar da troca e da partilha de sentimentos de pertença comunal entre populações fronteiriças.

Azinheira dos Guiões, V.V. de Ficalho, 2014

Lugar da aduana, Rosal de la Frontera 2014.

Ritual de agregação no espaço das comunidades 

Ao cerimonial de boas vindas segue-se o desfile dos grupos de festeiros, com os seus pendões, insígnias e estandartes pelas ruas das vilas. Em Ficalho o cortejo foi encabeçado pelo grupo de bombos de Vila Nova de São Bento que anuncia a chegada dos convidados, seguidos da Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Reguengos, dos membros da Comissão de Festas com o guião da Senhora das Pazes e São Jorge, dos festeiros convidados e por ultimo a Banda Filarmónica de Serpa. Alguns residentes assomam-se às portas ou janelas para assistirem ao desfile, outros juntam-se aos participantes até ao largo da Igreja Matriz. O percurso pelas ruas da vila integra simbolicamente os vizinhos no espaço da comunidade, onde são saudados e recebidos pelas autoridades e associações locais, em lugares com significado político e social.

Em Rosal de la Frontera o desfile até à Igreja Matriz do Rosal é encabeçado por um grupo de tamborileiros, seguidos dos membros da Hermandad com o guião de San Isidro e seus estandartes, e dos representantes da Comissão de Festas de Ficalho com o seu guião. Ao longo do percurso os santos são saudados fervorosamente pela população, que se junta ao cortejo cantando ao som de pandeiretas e tambores, numa manifestação coletiva de exaltação festiva, que mistura sentimentos e emoções expressas na letra de uma canção popular espanhola.

(…)

Hay un pueblo madre que Rosal se llama

Tiene a San Isidro como su patrón

Él es deseado en su romería

Allá le acogimos llenos de ilusión.

Qué bonito cuando llega

La vecina Portugal

Con su Virgen de las Paces

Como signo de amistad.

Consejero San Isidro

El cónsul de la amistad

De sentirnos tan unidos

Como rosas de un Rosal.

(autoria da Hermand de San Isidro, 2014)

Lugares liminares de religiosidade popular: as ermidas

As ermidas no campo, situadas na periferia do espaço comunitário das vilas, são lugares alternativos ao universo sagrado, representativos de uma religiosidade popular não institucional. Em torno das ermitas expressam-se crenças e sentimentos, por meio de atos de devoção, trocas de promessas e oferendas aos Santos. E ao longo do caminho até às ermidas, na missa campal e nas procissões os santos são aclamados e evocados em canções populares.

Moda da Senhora das Pazes

(…)

Vestida de branco

Milagres que fazes

De negro o teu manto

Que eu adoro tanto

Senhora das Pazes.

 

Lá na sua ermida

Lá no meio do campo

O povo delira

Ao ver-te tão gira

vestida de branco.

(autoria de Maria Rosa Campaniço, do Grupo coral feminino “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho).

Ermida da Senhora das Pazes, 2014.

Ermida de San Isidro, 2014.

Lugares de troca e de partilha: “misturam-se as vidas, misturam-se as coisas”

As romarias, como outros tipos de festas, desempenham funções religiosas e lúdicas, mas também cívicas e políticas que suscitam sentimentos de pertença e de identidade grupal, local e nacional (Homobono Martínez 2012: 43). Os ritos e os símbolos que constituem os enunciados de ambas as romarias não variam significativamente em ambos os lados da fronteira. O recebimento, os atos devocionais, a saída ao campo, o caminho, a comensalidade, a liturgia, a procissão, a música e o baile obedecem a sequências rituais comuns. Cada sequência ritual representa um evento integrado e padronizado de um sistema de interações sociais, cujo significado não pode ser entendido ou analisado separadamente das restantes componentes do sistema cultural. Trata-se, principalmente de misturas, como nos ensinou Marcel Mauss (2001). Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas, misturam-se as vidas, e as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e misturam-se. Esta mistura, como principio regulador da troca e da partilha, é expressada pelos participantes nos seguintes termos:

“(…) Este ritual de Santo Isidro com Nª Senhora das Pazes é único, é difícil de explicar, porque ali não há idades, não há raças, não há nacionalidades, há uma entrega, uma dedicação, uma união” (Lita,  Comissão de Festas, Abril de 2014).

“(…) Es una cosa que me movió desde chiquitita. Dicen las sevillanas que San Isidro es novio de la Virgen de las Paces (riso) enamorado de la Virgen de las Paces. Es un encuentro entre dos países,  y una amistad bonita entre dos países, entre Rosal e Ficalho  (Glória Charca, natural de Rosal, Maio de 2014).

“(…) Es una relación transfronteriza muy bonita, algo nuevo que antiguamente y históricamente no se sentía, era todo lo contrario, era bélico, y ahora es Paz, amistad y armonía (Juan António Fuentes, natural de Huelva, Maio de 2014).

“(…) Acho que não há fronteiras, acho que há uma ligação muito humana, tem a ver com a Humanidade, isto devia reverter era para tudo, não haver guerras, diferenças, distinções de raças” (João, Comissão de Festas, Abril de 2014).

“Es una manera de unir dos pueblos, tenemos hablas distintas, pero vivimos la fiesta igual” (Maria Isabel García, natural de Rosal, Maio de 2014).

Romaria da Senhora das Pazes, 2014.

Romaria de San Isidro, 2014.

 Representações sociais das festas e seus rituais

No tempo ordinário da vida quotidiana o sentido de lugar funciona pela agregação de pessoas que constroem e articulam referentes identitários em termos de pertença a um lugar particular, estabelecido mediante a oposição a outros lugares representados como alheios. No tempo excecional festivo o sentido de lugar dilata-se para integrar elementos simbólicos de grupos distintivos num coletivo unificador. A resignificação dos lugares, idealizados, reinventados e atualizados, permanecem “afetivamente” ligados à memória coletiva, como herança cultural de comunidades rurais e raianas. As representações sociais das festas e seus rituais, combinam dialeticamente a resistência ativa de afrontamento ao Estado e à Igreja, “nos seus esforços reguladores, de captura e domesticação sempre imperfeita” (Sanchis, 1983: 374). Nesta medida, as festas populares refletem as próprias vidas das pessoas, atravessadas por tensões e ambiguidades, repletas de idealizações entre um passado enaltecido e um presente gerador de sentidos, inspirador de atividades coletivas, de emoção globalizante, de comunicação e de participação, que aspira a um futuro de igualdade e fraternidade.

Referências bibliográficas

Augé, Marc. (1992) 2006. Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora.

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Mauss, Marcel (2001). Ensaio sobre a Dádiva, Lisboa: Edições 70.

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Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020. URL: http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf. [Consulta: 12 de Março de 2014].

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Sanchis, Pierre. 1983. Arraial: Festa de uma Povo As Romarias Portuguesas, Lisboa, Publicações D .  Quixote.

Zozaya Montes, Leonor. 2011. “Construcciones para una canonización: reflexiones sobre los lugares de memoria y de culto en honor a San Isidro Labrador”, Tiempos Modernos, 22.

 

Vídeos realizados no ámbito do trabalho de campo em 2014:

– “El cante y el baile en la Romería de San Isidro El Labrador”, Rosal de la Frontera (Huelva), 17 e 18 de Maio: http://www.youtube.com/watch?v=2DYucDa6-CU

– “Tamborileros «Los Bravo» en la Romería San Isidro El Labrador”, Rosal de la Frontera (Huelva), 17 e 18 de Maio: http://www.youtube.com/watch?v=3I1Wp76INMM

– “Baptismo – Romería de San Isidro El Labrador (Rosal de la Frontera – Huelva)”, 18 de Maio: https://www.youtube.com/watch?v=VtC-mWbE1qQ

– “O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)”, 26 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=tEED1kSR1Qg

– “«Os Amigos da Pinguinha» – na Festa da Senhora das Pazes” (Vila Verde de Ficalho, Baixo Alentejo): https://www.youtube.com/watch?v=rCDQqzmFDZI

– “El cante y el baile na Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 27 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=fcN8GFNormw

– “RITM’ARTES – Festa da Senhora das Pazes (Vila Verde de Ficalho – Baixo Alentejo), 25 a 27 de Abril: https://www.youtube.com/watch?v=AQmAQKOGOSs

– “Uma festa transfronteiriça – Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 25 a 27 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=SD2tyokqQFE

– “O Cante na Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho, 25 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=lpDUSmvVe2M

– “O tamborileiro na festa de Nossa Senhora das Pazes – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 24 de Abril: https://www.youtube.com/watch?v=Ij5cigD6Zq8

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional de Estudos sobre Memórias, Sons e Textos: festas e representações, entre a subversão e a patrimonialização, organizado pelo INET-md e IHC na NOVA FCSH. Lisboa, 19 e 20 de abril de 2018.

 

Lugares, pessoas e práticas musicais na raia luso-espanhola

A zona fronteiriça do Baixo Alentejo /Extremadura / Andaluzia caracteriza-se pela baixa densidade populacional e o acentuado índice de envelhecimento (Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la zona de Cooperación, 2013: 1). Os municípios são os principais empregadores e debatem-se com problemas estruturais, como o desemprego e a desertificação, e reinventam-se por meio de atributos identitários e novas festas. A etnografia mostra-nos que as festividades e as atividades musicais financiadas pelos municípios estão direcionadas para a cooperação e a inclusão social, como estratégia de atração turística ao serviço da qualidade de vida das populações.

       

Em contextos rurais envelhecidos e economicamente desarticulados o potencial da música como recurso cultural sustentável é fundamental ao desenvolvimento humano (Turino 2009), porque não só as pessoas sustêm a música, como a música sustem as pessoas, como assinala Titon (2009: 14). Consequentemente, a transmissão da herança cultural  implica a criação de modelos participativos, através de uma ação consertada entre os agentes culturais e os membros da comunidade, a fim de desenvolverem atividades que aspiram a um futuro possível. Na linha proposta por Titon (2009a: 129), para salvaguardar as práticas de música e dança o mais importante é promover as condições de hábitat em que as pessoas podem continuar a fazer música de diversos tipos, de distintas formas e modos, e por múltiplas razões. Neste sentido a cultura expressiva na fronteira luso-espanhola não pode ser observada numa perspetiva macro de movimentos musicais transnacionais que a cruzam, sob pena de obscurecer e perturbar o conhecimento de um processo cultural que implica a interação entre as pessoas e os lugares, assim como o entendimento de práticas culturais que reconstroem um passado comum, ritual e convivencial.

 

Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020. http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf

Titon, Jeff Todd. 2009a. “Music and Sustainability: An Ecological Viewpoint”. The World of Music 51, (1): 119-137.

– 2009. “Economy, Ecology and Music: an Introduction”. The World of Music 51, (1): 5-15.

 

O Festival Islâmico de Mértola

Mértola é uma vila raiana, sede de concelho com 6.840 habitantes (ERA-2013), pertencente ao distrito de Beja, região do Alentejo, sub-região do Baixo Alentejo. O Festival Islâmico criado em 2001 teve por base o trabalho arqueológico realizado sobre o período Islâmico, desenvolvido desde finais da década de 1970 pela equipa técnica do Campo Arqueológico de Mértola dirigida por Cláudio Torres, em parceria com o Município e outras entidades locais, associativas e académicas. A iniciativa extravasou as motivações iniciais (académicas, científicas, museológicas, culturais e pedagógicas) para assumir-se progressivamente como um evento de carácter turístico com forte impacto na economia local e regional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Durante os quatro dias do festival Mértola reinventa-se, como porto ocidental do Mediterrâneo que atingiu o auge da sua função mercantil durante o período islâmico, segundo uma “política cultural de encontro de culturas”. O festival transforma simbolicamente o espaço e o quotidiano da vila alentejana num lugar que apela à diversidade cultural e ao exotismo, por meio de um mercado árabe (souk) instalado nas ruas da zona histórica, exposições, sessões de cinema, workshops e conferências realizados em equipamentos culturais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A organização do Festival é da responsabilidade da Câmara Municipal, e está orientada para a inclusão social e a cooperação, através da criação de trabalhos temporários e da valorização de práticas da cultura, como marcadores da memória coletiva e da identidade local. As associações culturais e o comércio local colaboram no evento, de forma a explorarem todas as potencialidades dos espaços naturais, patrimoniais e culturais. Um parceiro fundamental desde o inicio do Festival é a Comunidade Islâmica de Granada, que contribui para a “autenticidade” do mercado souk, ao trazer os seus vendedores, e também os seus familiares, que criam uma ambiência familiar e comunitária de encontro de culturas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A cultura expressiva é representada em diversos concertos e espectáculos musicais, que misturam sonoridades alentejanas e do magrebe. Os grupos musicais são escolhidos em função dos interesses da organização do festival e das parcerias culturais com o município de Chefchaouen (Marrocos). A troca de experiencias musicais e performativas fazem-nos compreender o significado do tempo como mediador entre os anseios individuais e coletivos dos participantes, entre a fantasia e a realidade, entre o passado e o presente.

 

 

 

 

 

 

 

 

Num contexto rural economicamente desarticulado os impactos do festival são muito diversificados. Segundo o vereador da cultura, João Serrão, uma das razões para a regularidade de eventos é promover os produtos e as entidades locais, que são essenciais para a dinâmica económica do concelho de Mértola e para a melhoria da qualidade de vida do concelho.

 

 

 

 

 

 

 

 

Todas as festas são fenómenos sociais que constituem uma das expressões mais completas das utopias humanas de igualdade, liberdade e fraternidade. Ao (re)construírem modelos de humanidade, as festas fecundam os corpos para o colectivo reunificador, e fazem brotar o vigor da esperança, ao colocarem em cena gestos, saberes e memorias que evocam a vida, numa conjugação solidaria entre o passado e o presente. Jean Duvignaud (1984) diz-nos que as festas promovem uma “mística do dom”, ou seja, um dom que provoca a sua resposta em outro dom, numa troca que se intensifica num espaço delimitado e concentrado, que provoca nos participantes um conjunto de emoções e de vivências que favorecem o desenvolvimento do sentimento de participar de um corpo colectivo  (1984: 147-148). Mas apesar de existir um denominador comum na predisposição colectiva para se viver a festa como um tempo de esperança contra as incertezas do futuro, o Festival Islâmico representa um ponto de convergência de pessoas em torno de actividades significantes, que tentam resistir à turistificação e mercantilização da cultura.

 

Mértola,  1º dia do Festival, 18 de Maio de 2017

Programa: http://festivalislamicodemertola.com/data/uploads/programa_fim_2017_x.pdf

 

 

As celebrações musicais na raia do Baixo Alentejo: espaços de sociabilidade e experiências partilhadas

A relação entre música e desenvolvimento deve partir de abordagens que questionem o poder e a hegemonia do capitalismo global, e o seu impacto na vida das pessoas (Harvey 2007). Atendendo os processos económicos globalizados e aos processos sociais localizados, com o enfoque na experiência e na acção colectiva (Alguacil Gómez 2005). Isto significa que o nosso olhar sobre festas e festivais como fatores de desenvolvimento turistico deve estar atento ao avanço do capitalismo e às suas implicações na cultura, através de uma abordagem que permita compreender de que forma estes fenómenos são tratados em contextos locais (Hernández-Ramírez 2015).

No caso do Alentejo a estratégia de desenvolvimento regional delineada em Bruxelas, no quadro de programação 2014-2020, está direcionada para a exploração do Património Natural e Cultural como setor económico com elevado potencial para a rentabilização dos fatores identitários, e as verbas que comparticipam a realização das festas e festivais estão inseridas neste domínio, desde que a) tenham elevado impacto em termos de projeção da imagem da região, nomeadamente internacional; b) estejam associadas ao património e à cultura; c) apresentem potencial de captação de fluxos turísticos. (Portugal2020: https://www.portugal2020.pt/Portal2020/Media/Default/Docs/Programas%20Operacionais/TEXTOS%20INTEGRAIS%20DOS%20PO/PORALENTEJO2020_alterado.pdf)

O “património cultural” (Lowenthal 1998, Prats1998) transforma-se assim num espelhamento de uma sociedade desdobrada em mercadoria e espectáculo que é necessário “atualizar”, para lhe conferir um “poder de contemporaneidade”, de forma a corresponder às exigências do mercado, segundo duas perspectivas complementares: a globalização cultural e a heterogeneidade cultural por referência a identidades localizadas (Jeudy 2008).

Neste contexto, as festas e festivais transformaram-se num campo de estudo para investigadores de diversas áreas científicas, pelo universalismo da celebração, pela dimensão social das experiências festivas e como fator de desenvolvimento económico (Getz 2010, Gibson e Connell 2012, Jepson e Clark 2015.). Donald Getz (2010) diz-nos que os estudos estão pautados por três grandes discursos, ou linhas estruturadoras de produção de conhecimento. O discurso da antropologia e da sociologia, referente a papéis, significados e impactos das festas nas comunidades. O discurso dominado pela avaliação do impacto económico no turismo, ao nível do planeamento, do marketing e das motivações como destino turístico, que originou uma considerável reflexão e teoria crítica pelos festivais serem claramente mercantilizados pelo turismo. E o discurso empresarial, focado em elementos específicos da gestão de eventos, incluindo recursos humanos, riscos, logística e marketing, que ignora as necessidades fundamentais para a celebração e muitas das razões sociais e culturais que justificam o surgimento de novas festividades e eventos culturais.

Sem Título

A raia do Baixo Alentejo é uma das zonas da Península Ibérica com maiores índices de desertificação e de envelhecimento da população (ver Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020 http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf). A reprodução da maior parte das famílias já não passa pela agricultura, mas por atividades terciárias, trabalhos precários, pensões de reforma e subsídios de inserção social. Os municípios, como principais empregadores, debatem-se com falta de meios para responder a problemas estruturais, como o desemprego e a desertificação territorial (ver A ANMP e a atual situação do poder local em Portugal. 2012. Coimbra: Associação Nacional de Municípios Portugueses. Disponível em http://www.anmp.pt/files/dfin/2012/ANMP3201205PT.pdf). Ao abandono rural corresponde o desaparecimento da memória coletiva dos grupos, a que os poderes políticos contrapõem uma memória social patrimonializada e turistificada ao serviço do desenvolvimento económico da região.

 

Alguns dados estatísticos dos municipios raianos do Baixo Alentejo (2013)

Municipios
Barrancos Mértola Moura Serpa
Superficie/ km2 168,4 km² 1.292,9 km2 958,5 km2 1.105,6 km2
População residente 1.775 6.909 14.717 15.421
Densidade por km2 10,5% 5,3% 15,4% 13,9%
Desempregados inscritos no Centro de Emprego (% da pop.) 15,1,% 9,6% 16,8% 12,2%
Pensões de reformas (%) 46,9% 58,7% 49,1% 48,3%
Beneficiarios de RSI (%) 5,2% 2,6% 12,4% 6,3%
Despesas municipais na cultura e desporto (%) 11,3% 7,0% 12,9% 22,6%
Nº de Espectáculos 0 133 100 123
Nº de Recintos culturais 1 1 0 3

Fonte: PORDATA

Na última década assistimos à invenção de novas festas e festivais organizadas pelos municípios, baseadas em produtos e em particularidades culturais destinadas a atrair forasteiros e a competir com outros locais, por meio de atributos identitários. Nestas festas os municípios investem todos os seus recursos materiais e humanos, envolvem os produtores, as associações culturais, os grupos musicais e criam trabalhos temporários, que permitem a inclusão social e a cooperação entre os membros das comunidades.

ExpoBarrancos 2015

Aspecto da IX edição da ExpoBarrancos (Barrancos), 2015

Factor, 2016

Aspecto do Festival de Artes e Oficios da Raia – FATOR, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2016

Deste grupo de festas destaca-se pela projecção internacional o Festival Islâmico de Mértola e o Encontro de Culturas de Serpa. O Festival Islâmico de Mértola (Maio-bienal) foi criado em 2001 para celebrar a herança histórica e cultural islâmica da vila, segundo uma política “de encontro de culturas”, que mistura sonoridades alentejanas e do Magrebe numa diversificada programação musical. Durante quatro dias as ruas da zona histórica transformam-se num mercado árabe, que apela à diversidade cultural. Para além de exposições, conferências e workshops que dinamizam os equipamentos municipais e as associações culturais locais (ver http://www.festivalislamicodemertola.com/sobre-o-festival/apresentacao).

O Encontro de Culturas de Serpa foi criado em 2002, por um município que preconiza “a cultura como veículo de desenvolvimento sustentável para o concelho” e foi inicialmente designado por Encontros Luso-Brasileiros de Arte e Cultura. O espetáculo “EnRede” abre o evento, com a atuação de grupos musicais da Espanha, Brasil, Cabo Verde e América Latina, integrados numa rede cultural ibérico-americana. O dia 10 de Junho foi designado pelo “Dia do Cante” para promover os mais de 15 grupos corais alentejanos do concelho. O programa engloba ainda animações de rua, workshops, exposições e debates focalizados nas “indústrias culturais”, e na criação de redes de intercâmbio entre promotores e agentes culturais nacionais e internacionais (ver http://www.cm-serpa.pt/artigos.asp?id=1177).

Localmente as festas apresentam-nos diferentes organizadores, motivações, intencionalidades, públicos, recursos e géneros musicais, e devem ser interpretadas nos seus múltiplos significados. Do conjunto de festividades destacam-se as celebrações musicais de fruição local, organizadas por grupos corais alentejanos e por grupos de baile de sevilhanas, que representam experiências coletivas baseadas na convivialidade e na reciprocidade.

Ficalho 2015

Encontro de Grupos Corais, organizado pelas “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho, 2015

Os Encontros de grupos corais são atualmente integrados no Plano de Salvaguarda do Cante, e na relação deste com o desenvolvimento local, mas continuam a depender do trabalho voluntário de homens e mulheres que procuram os apoios financeiros necessários à sua concretização junto de entidades públicas e privadas. Os grupos convidados representam uma rede de relações construídas ao longo do tempo, segundo uma lógica de reciprocidade que marca a cultura dos grupos corais alentejanos. Isto significa que os grupos convidados têm a obrigação de retribuir o convite nas suas localidades, assim como as oferendas que recebem pela participação graciosa, segundo a “teoria da dádiva” de Marcel Mauss (2001 passin), fundamentada na obrigação de dar, de receber, e de retribuir.

grupos corais ficalho 2015

Grupo coral “Flores do Chança”, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2015

A mesma lógica de reciprocidade está presente nos espectáculos “Noche Flamenca”, organizados por grupos de sevilhanas nas suas localidades, para festejarem o término do ano escolar e exibirem as competências técnicas e artísticas adquiridas. A organização é coordenada pela professora Ana Castilla, natural de Cortegana (Huelva) e resulta da cooperação entre diversos coletivos (grupos familiares, associações culturais e autarquias) que participam na construção de geografias emocionais e atraem um público muito diversificado. Em todos os espectáculos participam grupos provenientes de ambos os lados da fronteira, para mostrarem que a música e a dança representam um trabalho experimental que engloba o processo estético e criativo com o processo social de interação entre portugueses e espanhóis.

rede

O trabalho e a iniciativa dos grupos corais e dos grupos de baile estabelecem uma clara relação entre música e desenvolvimento, e representam um “espirito empreendedor” que não se inscreve na lógica empresarial. Antes pelo contrário, as celebrações musicais resistem à dinâmica da globalização, baseada na extensão da lógica mercantil às práticas da cultura, através uma dinâmica cultural oposta e complementar de afirmação de práticas musicais baseadas na convivialidade, na cooperação e na reciprocidade.

noche flamenca 2014

“Noche Flamenca” de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2014.

A etnografia mostra-nos que as festas organizadas pelos municípios rentabilizam os meios materiais e humanos disponíveis e estão orientadas para a inclusão social e a cooperação, através da criação de trabalhos temporários e da valorização de práticas da cultura, como marcadores da memória coletiva. As festas comemoram as identidades e os valores das comunidades e assinalam um tempo de utopia, de alegria e abundância, pela partilha de experiências, de bens e de afectos. Num contexto rural economicamente desarticulado os impactos das festas são muito diversificados, embora exista um denominador comum na predisposição colectiva para se viver a festa como um tempo de esperança contra as incertezas do futuro. A “sociabilidade festiva” como experiência colectiva é fundamental à transmissão de valores e de saberes, e como ponto de convergência de pessoas em torno de atividades musicais significantes, que resistem aos modelos de turistificação e mercantilização da cultura.

noche flamenca Barrancos, 2015

“Noche Flamenca” de Barrancos, 2015

Num contexto rural e fronteiriço as práticas musicais entrelaçam a dimensão micro das relações de vizinhança com a dimensão macro de uma sociedade globalizada. As celebrações musicais dos grupos corais e dos grupos de sevilhanas promovem uma imagem do lugar para o exterior, como imagem de marca de atributos culturais que não dissociam a música de uma cultura baseada na convivialidade e na reciprocidade, como valor de pertença a um “lugar social” por oposição aos “não lugares”(Augé 2005). Um lugar social individualizado no espaço e no tempo, pertencente a um mundo global, que permite o desenvolvimento da criatividade e a construção de utopias que atribuem sentido e significado à vida de pessoas que participam na construção de futuros possíveis.

 

Referências bibliográficas:

Alguacil Gómez, Julio. 2005. “Los desafíos del nuevo poder local: la participación como estrategia relacional en el gobierno local”. Polis (12): 2-17.

Aramberri, Julio. 2011. Turismo de masas y modernidad. Un enfoque sociológico. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas.

Augé, Marc. 2005. Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora.

Clifford, J. 2000. “Taking Identity Politics Seriously: ‘The Contradictory, Stony Ground”. En Without guarantees: in honour of Stuart Hall, eds. Paul Gilroy, Lawrence Grossberg y Angela McRobbie, 94-112. London/New York: Verso.

Duvignaud, Jean. 1984. Fêtes et civilizations. Paris, Scarabée & Compagnie, 2ème édition.

Getz, Donald. 2010. “The nature and scope of festival studies”, International Journal of Event Management Research, Volume 5, Number 1.

Gibson, Chris. y Connell, John. (eds.). 2012. Music, Festivals and Regional Development in Australia. Ashgate.

Harvey,  David. 2007. Breve historia del neoliberalismo, AKAL.

Hernández-Ramírez, Javier. 2015. “Turismo de base local en la globalización”. Revista Andaluza de Antropología (8): 1-18.

Jeudy, Henry-Pierre. 2008. La machinerie patrimoniale. Paris: Circé.

Jepson, Allan. y Clark, Alan. (eds.). 2015. Exploring Community Festivals and Events. London/New York: Routledge.

Lowenthal, David. 1998. The heritage cruzade and the spoils of history. Cambridge: Cambridge University Press.

Mauss, Marcel. 2001. Ensaio Sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70.

Prats, Llorenç. 1998. “El concepto de patrimonio cultural”. Política y Sociedad (27): 63-76.

 

(Comunicação apresentada ENIM 2016- VI Encontro Nacional de Investigação em Música, que se realizou na Universidade de Aveiro de 3 a 5 de novembro de 2016. Programa: http://www.spimusica.pt/wp-content/uploads/2016/05/Programa-ENIM-2016.pdf)

 

Práticas culturais contra-hegemónicas na “sociedade do espectáculo”

O neoliberalismo suscitou uma formidável crença na propriedade privada e no livre comércio e fez retroceder os limites do não mercantilizável, ao sacralizar o poder dos mercados sob “o signo da liberdade” (Bourdieu 1998). Os efeitos imediatos desta acção destruidora não é apenas a violência estrutural do desemprego e da precariedade, mas também o desaparecimento progressivo dos universos simbólicos de produção cultural, pela imposição intrusiva dos valores comerciais (Bourdieu 1998, Comaroff e Comaroff 2001, Harvey 2007, Ortner 2011). Neste contexto, a mercantilização da cultura como espectáculo e lazer, assim como a exploração da autenticidade e da criatividade popular, “pressupõe atribuir um preço a coisas que na realidade nunca foram produzidas como mercadorias” (Harvey 2007, 182).

A produção simbólica sobre a lógica do consumo capitalista consolidou valores, conceitos e práticas que sustentam um estilo de vida e de cultura hegemonicamente articuladas com as relações estruturantes. A centralidade do simbólico coloca a imagem, a representação e o espectáculo enquanto características reforçadas pela contemporaneidade. A realidade fragmentada é marcada pela subjetividade e pela arbitrariedade, na escolha dos seus parâmetros constitutivos. No campo simbólico, a realidade é o universo do facto editado, da verdade construída, do desejo sugerido e do consumo intensificado, enquanto prática cultural e parâmetro identitário” (Harvey, 1996: 259-260). A mutabilidade constante, a velocidade e a superficialidade com que a fragmentação da vida quotidiana é apresentada, estabelece uma continuidade com a grande narrativa neoliberal, que passa pela consolidação e universalização da lógica da produtividade e pela mercantilização do simbólico.

A sociedade contemporânea, apesar de cultivar religiosamente o passado, perdeu a capacidade de conhecê-lo, ao viver o “presente perpétuo” (Debord, 1995: 80) de um quotidiano marcado pela superficialidade de conceitos e valores, pelo carácter descartável das suas recriações, e pelo estímulo consumista. A “sociedade do espectáculo” (Debord, 1967) do consumo e da fragmentação representa a negação da própria humanidade na procura da felicidade, por meio da destruição da liberdade de escolha, totalmente preenchida no imaginário pela satisfação garantida, a partir de um real fabricado e de um mundo saturado de imagens. No entanto, “o espectáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (Debord 1995, 8). O debate que proponho articula a interacção global da “sociedade do espectáculo”, como parte decisiva da hegemonia política, com as práticas culturais contra-hegemónicas preservadas pelas comunidades, tomando como objecto empírico as estudantinas, ou danças carnavalescas da raia do Baixo Alentejo, que surgem da espontaneidade e criatividade de grupos não institucionalizados nem mediatizados.

Nas sociedades rurais alentejanas o Carnaval foi uma espécie de “para-raios” para todo o tipo de tensões sociais, que permitia aos trabalhadores rurais revelarem no espaço público as suas aspirações por meio de canções. Até ao 25 de Abril de 1974 os versos das Estudantinas passavam pelo crivo da censura do Presidente da Câmara, ou do regedor, e eram cantados por grupos de homens pelas ruas das vilas no domingo e na terça-feira gorda. O conteúdo de crítica social visava acontecimentos locais, e os comportamentos dos vizinhos sem os nomear, mas alguns versos eram especialmente dedicados às elites rurais:

(…)

O senhor António Vasquez

Homem rico lavrador

Homem de bom coração

Para fazer um favor

É amigo da pobreza

Fala com toda a gente

Trata bem os seus criados

E andam todos contentes.

(…)

(Versos da Estudantina de Barrancos, década de 1940,  recordada por Manuel Agudo dos Santos em 2008)

A representação realizava-se no espaço público, frente à casa do visado, e o lirismo dos textos estava impregnado de relações de poder que demarcavam classes sociais, por meio de mensagens de aparente submissão, que impõem o “pão e o circo” (Veyne, 1976), como concessões políticas conquistadas pelas classes subordinadas. Como assinalou Paul Veyne o poder dominante não oferecia o “circo” ao povo para o despolitizar, o povo é que se politizava contra o poder dominante se este lhe negava o “circo” (Veyne, cit. em Scott, 2003: 263). Isto significa que a classe dominante ao permitir mais “válvulas de escape” que não alterassem a ordem estabelecida, diminuía potencialmente o descontentamento colectivo e a possibilidade de rebelião das classes subordinadas. Como salienta James C. Scott, independentemente das premissas implícitas, que estão por detrás de cada acto de comunicação, o comunicador quer dizer o que disse, e apesar do poder social no Carnaval ser menos assimétrico, o poder recíproco continua a ser poder (Scott, 2003: 248). Se aceitarmos o Carnaval como “a válvula de escape” que permitia libertar o “discurso oculto”, aliviando tensões sociais, não podemos deixar de considerar que os versos estavam condicionados por regras, não apenas de ordem convencional, mas também por um sistema repressivo que condicionava todos os âmbitos da vida social, impedindo qualquer forma de manifestação de descontentamento.

Estudantinas

Estudantina de Barrancos (Barrancos), 1961

O Carnaval, como tema milenário do “mundo às avessas”, que contraria uma visão do mundo “naturalizada”, propiciava práticas rituais que representam uma “segunda vida do povo”, que aspirava temporariamente ao reino da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância, por isso todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, da consciência alegre sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (Bakthin, 2002: 10). Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão e a negação de uma ordem social radicalmente diferente daquela que vivem (Scott, 2003: 126). Das Estudantinas de Barrancos restam apenas algumas fotografias e versos que ajudam a reconstruir a memória de uma prática ritual, que atualmente não mobiliza nem atrai novos colectivos.

estudantina

Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2017

Na Amareleja, freguesia do concelho de Moura, com cerca de 2.000 habitantes em 2013, as Estudantinas mantiveram alguma continuidade como prática carnavalesca, independentemente da intervenção da Junta de Freguesia em 1992, ao promover o primeiro concurso de Danças/Estudantinas. Tratou-se de um processo de construção de memória colectiva, para “manter a tradição”, que estabeleceu um roteiro pela vila, assinalando os locais de actuação, que atualmente se mantêm. A Junta de Freguesia da Amareleja também apoia os grupos com 150€, e oferecia um jantar no final do desfile. Mas a crise económica e os consequentes cortes nos apoios municipais à cultura não davam “nem para petiscar…” como assinalavam os versos de uma Estudantina de 2014.

2014

Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2014

A festa começa pela manhã, no lugar dos Barranquinhos, situado no extremo da vila, e termina no Regato, o coração da vila alentejana. Os grupos percorrem as ruas criando o seu roteiro de atuações, mas todos convergem no Lar de Idosos, frente à Casa do Povo e no Regato. Os vizinhos assomam-se às janelas e às portas, para partilharem do riso e da crítica social, e alguns contribuem com o que podem para a coleta dos grupos no final das atuações. Ao longo do percurso são recebidos em casas de amigos e familiares que lhe oferecem comida e bebida. “- É a folia que nos chama!”, dizem uns versos, reafirmando que “a Amareleja tem mais cor quando chega o Carnaval”.

António Guerreiro 2015

Estudantina de António Guerreiro, Amareleja (Moura), 2015

Maanuel estevão

Estudantina de Manuel Estevão, Amareleja (Moura), 2015

Nos últimos anos, a festa carnavalesca da Amareleja reúne grupos provenientes da Granja, Safara, Santo Amador e Santo Aleixo da Restauração, povoações vizinhas desertificadas que no passado reuniam localmente diversos grupos de Estudantinas. Atualmente apresentam a sua estudantina integrados no desfile organizado pela Junta de Freguesia, que se inicia junto à Igreja Matriz, e percorre a principal artéria da vila, com atuações frente à Junta de Freguesia, nas 4 esquinas e no Regato, lugar para onde converge o público (locais e forasteiros).

santo aleixo, 2017

Estudantina de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2017

Estes grupos afirmam-se como protagonistas intemporais de um passado que aspira ao futuro e à transformação da sociedade, por meio da linguagem do corpo, do discurso de resistência à versão oficial do mundo, do espírito ambivalente e regenerador, da alegria e da abundância de comida na celebração da vida colectiva. Os participantes, de ambos os sexos e de diferentes faixas etárias, estão vinculados entre si por laços de parentesco, de vizinhança e de amizade e partilham a mesma visão do mundo. Quase todos os participantes evocam algum familiar com o qual se estrearam nas Estudantinas, prática que preservam e reivindicam como herança cultural.Cada grupo cria um repertório caracterizado por temáticas que articulam as problemáticas reais da comunidade local, com as imagens globais da “sociedade do espectáculo”. Os temas de crítica social representam uma “visão do mundo” de falsas promessas eleitorais, de alterações de valores e perdas de direitos sociais. As canções denunciam o desemprego e as falsas expectativas criadas pelos cursos de formação, os subsídios da União Europeia para “os jovens agricultores”, que nada produzem, os conflitos políticos entre os representantes do poder local, as promessas não cumpridas em torno da construção de um Pavilhão, do abastecimento da água, ou do direito aos serviços de saúde.

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Estudantina de Hortense Lameira, Amareleja (Moura), 2017

No contexto sociopolítico contemporâneo os políticos e as figuras mediáticas são destituídas das suas funções e posições sociais, para surgirem em situações que desafiam o riso colectivo, ambivalente e universal, que nega e afirma o permitido, o proibido, a censura e o excesso. A “sociedade do espectáculo” é desconstruída localmente, a partir de casos mediatizados (“o Sócrates”, “o terrorismo” e a intolerância religiosa), ou de programas de televisão como “A casa dos segredos”.

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Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2017

As Estudantinas resistem à “sociedade do espectáculo” pelo espírito ambivalente e regenerador que preserva o sentido mítico e colectivo da celebração, na qual prevalecem as comunicações personalizadas. A cultura como parte decisiva da hegemonia política impõe a discussão em torno de práticas culturais contra-hegemónicas, como possibilidades alternativas ao futuro das sociedades. Esta “transgressão” temporária, que não altera a ordem social, aspira a instaurar a verdade no mundo ao denunciar as falácias do discurso hegemónico. Os participantes aspiram sobretudo à partilha colectiva da abundância e da alegria, na esperança de um futuro renovado.

(…)

Andam esses presidentes

Loucos com más intenções

Pra não espalhar a Peçonha

Fazem muros de vergonha

Pra meter medo às nações.

Não podemos entender

A razão de tanta guerra

Quando é que o homem faz

Um exército de paz

Para as crianças da terra.

(…)

(Versos da Estudantina de Hortense Lameira, 2017)

 

 

Referências bibliográficas

Bakthin, Mikhail. 2002 (1941). A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento São Paulo: Hucitec, Annablume Editora.

Bourdieu, Pierre. 1998. “The essence of neoliberalism”, Le Monde Diplomatique. Dezembro. https://mondediplo.com/1998/12/08bourdieu.

Comaroff, Jean e John Comaroff. 2001. “Millenial Capitalism: First Thoughts on a Second Coming”. In Millenial Capitalism and the Culture of Neoliberalism, editado por Jean Comaroff e John Comaroff, 2-56. Durham: Duke University Press.

Debord, Guy. 1995 (1967). La sociedad del espectáculo. Santiago de Chile: Ediciones Del Naufragio. http://criticasocial.cl/pdflibro/sociedadespec.pdf.

Harvey, David. 2007. Breve historia del Neoliberalismo. Madrid: Ediciones Akal.

– 1996. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola.

Ortner, Sherry. 2011. “On Neoliberalism”, Anthropology of this Century 1. http://aotcpress.com/articles/neoliberalism/.

Scott, James C. 2003 (1990). Los Dominados y el Arte de la Resistencia. México: EditorialTxalaparta.

 

(Comunicação apresentada na Jornada de Estudos Memória Património e Devir: entre futuros passados e tempos inéditos,  organizada pelo Instituto de História Contemporânea e Instituto de Etnomusicologia – Centro de Música e Dança (INET-md). Lisboa, FCSH-UNL, 20 de Abril de 2017. Programa disponível em: http://www.inetmd.pt/images/JornadaPatrinonioDevirPrograma.pdf)

 

 

Las romerías, la música y la danza

El calendario festivo de los andaluces está configurado por viejas celebraciones religiosas romanas que organizaban el tiempo festivo diferenciado del tiempo de ocio. Se celebran las festividades en parte herederas del calendario pagano y otras que conmemoran distintos momentos de la vida, así como las de los santos patronos. En las romerías la música y la danza poseen una consistencia performativa intuitiva, cuando sus ejecutantes poseen una gramática e un sistema musical interiorizados que transmiten por medio de prácticas sociales. Es imposible disociar la música de la dimensión ritual de las romerías, especialmente significante en los procesos de producción e experiencia musical tradicional. Cualquier performance musical es un evento integrado y padronizado de un sistema de interacciones sociales, cuyo significado no puede ser entendido o analizado separado de las restantes componentes del sistema cultural (Blacking 1995: 226-227). El baile por sevillanas, predominante en la parte occidental de Andalucía desde hace muchas décadas, se complementa con fandangos, verdiales y canciones de cuadrillas, característicos de la zona oriental. Todavía, los reportorios musicales de los grupos de tamborileros y de flamenco, siguen cada vez más el modelo institucionalizado y patrimonializado de la Romería de El Rocío .

Las romerías están vinculadas a una “religiosidad popular”, que debe ser entendida como una de las manifestaciones de la cultura de una comunidad, cuyo campo de estudio será “el conjunto de creencias y rituales fruto de la actividad simbólica de un grupo humano y que el propio grupo ha caracterizado como sagrados o religiosos”. Sin embargo, “a la religiosidad popular pertenecen las ideas de una comunidad sobre los seres sobrenaturales y su influencia en la vida (creencias), así como las prácticas mediante las cuales el individuo o la colectividad se pone en relación con estos seres (ritos)” (Arregi, 1993: 532). Esta religiosidad se expresa fundamentalmente a través de las fiestas, entre las que destacan las romerías o peregrinaciones anuales a los santuarios locales, como por ejemplo los de San Isidro (Rosal de la Frontera), San Mamés (Aroche) y San Antonio (Cortegana), en honor de las imágenes titulares de hermandades.

Las hermandades son organizaciones complejas y con base jurídica, que han suplido en el pasado siglo en no pocos casos a las mayordomías, que sin embargo conservan un destacado papel en los actos rituales de la fiesta. Son características básicas de las hermandades el ser asociaciones de seglares, autorizadas por la autoridad ordinaria eclesiástica, que dan culto especial a una o varias imágenes titulares en altares y capillas parroquiales, iglesias conventuales, capillas y ermitas. La ermita, situada en la periferia del territorio comunitario, es el polo alternativo del universo sagrado popular: “representa una religiosidad no institucional ni jerarquizada, que suscita la desconfianza de la autoridad eclesiástica”. Es en torno a ermitas y santuarios, donde se conservan con mayor vigencia las creencias populares y tiene lugar todo un sistema de rituales colectivos. Los rituales festivos son intrínsecamente polisémicos, y comprenden una pluralidad de significados no siempre iguales para todos los participantes, todavía las secuencias rituales y festivas que se suceden durante una romería no varían significativamente: subida, llegada, actos devocionales, liturgia, procesión, comensalismo, música y baile.

Las romerías son peregrinaciones a las ermitas, alejadas del pueblo, unas fiestas en el doble sentido litúrgico y festivo, de conmemoración religiosa y de reencuentro anual propicio para la celebración lúdica, turística y participativa; cuyas tres referencias fundamentales son los lugares de origen de los romeros; el camino, que requiere varias horas de viaje a pie y la ermita, así como la relación mágico religiosa con el Santo, de exaltación de las comunidades.  “Como otros tipos de fiestas, desempeñan funciones religiosas y lúdicas, pero también cívicas o políticas, ya que suscitan sentimientos de pertenencia e identidad grupal, local y nacional” (Homobono Martínez, 2012: 43). En las romerías predomina lo festivo y lúdico sobre lo religioso, y el comensalismo institucionalizado, que constituye un interesante aspecto diferenciador de estas fiestas frente a otras similares del resto de la Andalucía.

 

Referencias bibliograficas:

Arregi, Gurutze & Manterola, Ander. 1993. “Religiosidad popular”. In Diccionario temático de Antropología, Barcelona: Boixareu.

Blacking, John. 1995. “Music, Culture and Experience”. In Music, Culture & Experience, Chicago, University of Chicago Press, p. 223-242

Homobono Martínez, José Ignacio. 2012. “Dimensiones nacionalitarias de las fiestas populares: lugares, símbolos y rituales políticos en las romerías vascas”, Zainak. 35: 43-95.

Félix Sancha Soria (2013) “90 años de la Hermandad de San Mamés”: http://www.huelvainformacion.es/article/opinion/1527107/anos/la/hermandad/san/mames.html

Talego Vázquez, Félix. 2003. “Significados simbólicos de las principales fiestas de Aroche”, VII Jornadas del Patrimonio de la Sierra de Huelva, Diputación Provincial, Rosal de la Frontera, 49-84: http://www.federacionsierra.es/media/documentos/doc337.pdf

 

 

O Cante na raia do Baixo Alentejo – passado, presente e horizontes de expectativa

No filme “Alentejo, Alentejo”, de Sérgio Tréfaut, o mestre Bento Maria Adega, cantador de Safara, diz-nos que “foram cigarras e pássaros que ensinaram os alentejanos a cantar”. No entanto, os estudiosos atribuem diversas origens ao Cante Alentejano, que entrelaçam influências culturais cristãs, judaicas e árabes. Sobre as terras alentejanas escreveu Luís de Freitas Branco: “a região alentejana, de tão gloriosas tradições musicais, parece justificar, na tendência polifónica do seu povo, a teoria geralmente aceite de que a extraordinária florescência do estilo a cappella, em volta de Évora, não fosse obra do acaso” (Freitas Branco, 1929: 24). Armando Leça ao referir-se à imensa planície que é o Baixo Alentejo e aos seus magníficos corais escreveu: “a paisagem do Baixo Alentejo sem corais é como catedral gigantesca sem as sonoridades do órgão” (Leça, s/d: 32). Rodney Gallop (1960) também manifestava um entusiástico fascínio pelo Cante, afirmando: “na pequena região de entre Beja e a raia, que compreende Serpa, Moura e alguns sítios mais humildes, conservou-se uma tradição de cantar a três partes, que não tem paralelo na minha experiência de qualquer país” (Gallop, 1960: 30). No entanto, as primeiras referências documentais ao Cante remetem para o final do século XIX, início do século XX, e a denominação mais antiga e usual era de “Canto às Vozes”. João Ranita Nazaré diz-nos que a primeira alusão aos cantares no Baixo Alentejo data de 1886, da autoria de Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho (1837-1903), num livro de contos em que descreve alguns costumes populares e onde o Cante surge ligado à dança: “ficavam horas no baile, andando à roda n’um passo vagaroso, cantando em coro as modas lentas, entoadas em terceiras, prolongadas em sonoridades singulares e doces” (Marchi, 2010: 8). Na revista A Tradição (1899-1904) encontramos um conjunto de textos de Manuel Dias Nunes e um cancioneiro com 60 cantigas (com pauta), que manifestam o interesse das elites intelectuais pelo Cante e outras práticas musicais associadas à cultura popular. A César das Neves e Gualdino de Campos devem-se os três volumes do Cancioneiro de Musicas Populares (1893-1899) contendo letra e música de canções, e a António Tomás Pires os quatro volumes que compõem os Cantos Populares Portugueses (1902-1910) recolhidos da tradição oral, contendo canções provenientes das diversas províncias portuguesas, com predomínio do Alentejo. Na Amareleja, terra do Padre António Marvão, musicólogo e folclorista autor do Cancioneiro Alentejano (1946), encontramos na Sociedade Recreativa Amarelejense uma foto de um grupo de cantadores, datada de 1887, que serve para legitimar a tradição do Cante junto dos seus associados e inspirar o actual grupo coral, formado em 2007.

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Em 1902, Manuel Dias Nunes fala-nos dos cantadores: “essa pobre e sofredora gente, que leva a vida inteira a moirejar, disseminada por montes e vales, à chuva, ao sol, ao frio, encontra no canto coral como que um doce lenitivo à rudeza do labor que a subjuga desde o berço até à sepultura.” (“Costumes da minha terra ― os descantes”, in A Tradição, Ano IV, p. 8). José Alberto Sardinha (2001) descreve-nos a prática do cante e da dança nas aldeias alentejanas nos seguintes termos:

“As moças cantavam muito bem, frequentemente sozinhas, fazendo a polifonia tradicional do canto alentejano. Ali, a tradição não tinha senão uma regra fixa: no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto. Não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar e os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar” (Sardinha, 2001: 29).

Na década de 1930, com o início do processo de folclorização, cujo objectivo era representar a tradição duma localidade, duma região ou da Nação, assistimos à mobilização de mediadores, pessoas letradas que exerciam influência pessoal ao nível local, regional e nacional, e intervinham na selecção e adaptação de repertórios, na organização de grupos folclóricos e de eventos (Castelo-Branco & Branco, 2003). No processo de adequação do Cante ao contexto político e cultural do Estado Novo, as casas do povo foram o espaço social privilegiado para a criação e emblematização dos grupos corais, como representações locais da Nação. A partir de 1933 o Estado Novo controla todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. Os estatutos da FNAT (1935) determinavam uma educação estética de exaltação do rural, assente nos pilares do folclore e da etnografia, impondo um “modelo nacionalista-ruralista-tradicionalista da cultura popular”, com o objectivo de legitimar o regime e estabelecer um consenso social em torno de um conjunto de valores, imagens e práticas culturais (Torgal, 1982). As elites locais alentejanas participaram deste processo, e contribuíram para a “domesticação” e divulgação dos grupos corais, organizando espectáculos na capital. No primeiro espectáculo organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), a 23 de Março de 1937, no Teatro São Luís em Lisboa, participaram os grupos corais de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). Francisco Valente Machado (1980) afirma ter sido “a primeira vez que cantadores alentejanos se exibiram na capital do País”, e descreve como se “deslocaram em passos lentos e cadenciados pelo Chiado abaixo até ao Rossio, entoando maravilhosos cantos da sua província, como se se encontrassem nas terras das suas naturalidades”. Para assinalar a participação no evento, o cantador António Soares, do grupo coral de Vila Verde Ficalho, versejou: “Esta noite sonhei eu /Um sonho muito feliz/ Sonhei que estava cantando / No Teatro São Luís” (Machado, 1980: 279).

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Entre 1939 e 1940, o musicólogo Armando Leça realizou o primeiro levantamento “músico-popular feito em Portugal através do registo mecânico de som”, de cantares e danças populares. Tratava-se de uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade e o terceiro da Restauração. O objectivo era organizar uma compilação “das mais características e genuínas músicas e canções populares existentes em todas as províncias do continente português” (Sardinha, 1992). Armando Leça esteve no Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve. No Baixo Alentejo foram gravados grupos de Moura, Serpa, Aldeia Nova de São Bento, Baleizão, Aljustrel, Castro Verde Mértola e Vila Verde de Ficalho. O registo de som em fita magnética esteve a cargo da Emissora Nacional, mas a publicação desta recolha pioneira, prevista pela Comissão dos Centenários, não chegou a realizar-se (Sardinha, 1992). No entanto, a 30 de Novembro de 1940 Armando Leça proferiu uma conferência sobre o seu trabalho, intitulada: “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, na Casa do Alentejo, durante a qual se exibiu o grupo de cantadores de Vila Verde de Ficalho.

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O Cante estava profundamente ligado à vida dos trabalhadores rurais, ao trabalho agrícola, ao convívio nas tabernas, e às festas, animando os bailes ao som da viola campaniça, da harmónica ou do adufe, que serviam para imprimir ritmo (Marvão, 1955; Machado, 1980). Joaquim Soares, presidente da direcção da “Associação Moda”, recorda que o Cante era entoado por homens e mulheres, que cantavam no campo, a caminho de casa, nas festas, e que hoje o Cante é associado sobretudo aos homens, porque “era nas tabernas, em torno do vinho e do tremoço, que se organizavam os grupos, e aqui não entravam as mulheres. Falamos dos anos 40, 50 do século XX. (…) Hoje há menos convívio. Hoje os grupos marcam ensaios. Antes cantavam a trabalhar e no lazer e assim se organizavam” (ver artigo “Associação Moda – O cante alentejano é «melodia que transmite o sentimento de um povo»” em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=4611). No mesmo sentido falaram os cantadores e cantadeiras com quem conversei em Santo Aleixo da Restauração, em Barrancos, na Amareleja e em Vila Verde de Ficalho, quando evocam o Cante como expressão de sentimentos e experiências de vida.

O Cante Alentejano é caracterizado como uma polifonia simples, a duas vozes paralelas, à terceira superior, formado por um coro, sem instrumentos, de homens, de mulheres ou misto, que cantam estruturas poéticas denominadas por “modas”. Segundo Manuel Joaquim Delgado (1955) esta denominação provém do facto destas canções se divulgarem de boca em boca, entre a população rural alentejana, caindo assim na “moda” (1955: 7). As “modas” cantam a terra, o trabalho, os acontecimentos e os sentimentos de homens e mulheres, no sentido do amor, da saudade, da zombaria e da crítica social. As modas são formadas por estrofes poéticas e interpretadas segundo um cânone estabelecido: um solista, denominado como ponto, inicia o canto, cantando uma quadra solta, de seguida um outro, designado por alto, substitui-o, cantando o primeiro verso da moda, e de seguida todo o coro se lhes junta para cantar o restante. O padre António Marvão (1955) diz-nos que podemos dividir o cante alentejano em três tipos de música: as modas lentas, as modas coreográficas e os cantes religiosos, como os “Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo” publicados nesta página (https://culturaexpressiva.wordpress.com/2015/01/24/cantos-populares-de-natividade-das-janeiras-e-dos-reis-na-raia-do-baixo-alentejo/)
Nos finais da década de 1950, as transformações na agricultura e os subsequentes fluxos migratórios dos trabalhadores rurais para as cidades, na procura de melhores condições de vida, altera a geografia emocional do Cante, como espaço de interação social entre as pessoas e os lugares. No contexto da Diáspora formam-se os primeiros grupos corais nos arredores de Lisboa, enquanto os grupos locais perdem gradualmente os seus cantadores. No pós 25 de Abril os grupos corais alentejanos são resignificados e participam em comícios, manifestações e reivindicações dos trabalhadores rurais, assumindo um papel de intervenção política. Assiste-se à formação de novos grupos nos quais as mulheres passam a assumir um papel relevante, e à criação de “modas” que denunciam a exploração, a fome, a repressão nos campos e as legitimas aspirações da Reforma Agrária. A partir da década de 1980, com o fim do processo revolucionário, abandona-se as temáticas de intervenção politica e social, recuperam-se os repertórios tradicionais e vive-se um período de indefinição do Cante, que conduz ao desaparecimento e envelhecimento dos grupos. Na década de 1990 assiste-se a uma renovação do Cante, com o surgimento de novos grupos na Diáspora e de grupos femininos locais, que teimam em manter e defender a sua identidade cultural.

No ano 2000 foi criada a MODA – Associação do Cante Alentejano, para “divulgar, defender e dignificar o canto alentejano”, congregando uma parte significativa dos grupos corais em actividade no Alentejo e nas regiões de Lisboa e Setúbal. Numa entrevista à agência Lusa, Joaquim Soares afirmava que “o envelhecimento dos grupos corais era um dos grandes problemas do Cante”, precisando que a maioria dos grupos associados da Moda “eram constituídos sobretudo por homens entre os 50 e os 70 anos”. Joaquim Soares defendia o ensino das modas nas escolas e nos conservatórios da região, para que as novas gerações aprendessem “o cantar típico da sua terra como aprendem outras músicas” (ver artigo em: http://expresso.sapo.pt/cante-alentejano-sobrevivencia-depende-da-convivencia-dos-dos-mais-velhos-com-geracao-mp3=f533813#ixzz2aYbKDQjM).
Em 2012, José Francisco Colaço Guerreiro, num artigo publicado no Correio do Alentejo afirmava que “o cante hoje deve ser tido como um produto cultural, um património de inestimável valor, pertença colectiva de um povo e de uma região e não mais uma manifestação etnográfica específica do proletariado rural” (ver artigo em: http://www.correioalentejo.com/?opiniao=1157&page_id=56). Para o músico Janita Salomé “é no território de laboratório, experimentando coisas novas, nomeadamente instrumentos, que o cante deve evoluir, sem perder a sua matriz”, para isso, considera que “é essencial captar gente nova para o cante” (ver artigo em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=5255&dossier=http%3A%2F%2Fwww.cafeportugal.pt%2Fpages%2Fdossier_artigo.aspx%3Fid%3D6038&did=6038). Neste sentido, foram implementados dois projectos de ensino do Cante Alentejano, um em Serpa e outro na Damaia, para além de novos projectos que têm surgido em Barrancos e na Amareleja, motivados pela candidatura e reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade. Por outro lado, assiste-se ao surgimento de novos grupos corais, constituídos por jovens com formação musical, oriundos de contextos urbanos, que parecem dar resposta às problemáticas em torno da continuidade do Cante. O processo de candidatura, ao mobilizar autarquias, associações, agentes culturais e grupos corais também criou novas expectativas nos cantadores. Todavia, continuam a debater-se com os problemas de sempre, a falta de recursos financeiros e de reconhecimento como grupos musicais, no contexto da indústria discográfica e do espectáculo.

 

Bibliografia:
DELGADO, Manuel Joaquim (1955) Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo, vol. II, Lisboa.
FREITAS BRANCO, Luís de (1929) A Música em Portugal, [brochura da] «Exposição Portuguesa em Sevilha», Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa.
GALLOP, Rodney (1960) Cantares do Povo Português: estudo critico, recolha e comentário, Lisboa, Instituto de Alta Cultura.
GIACOMETTI, Michel (1981) Cancioneiro popular português, (com a colaboração de Fernando Lopes Graça), Lisboa, Círculo de Leitores.
LEÇA, Armando (s/d) Música Popular Portuguesa, Lisboa.
LOPES-GRAÇA, Fernando (1991) A Canção Popular Portuguesa, Lisboa, Caminho.
MACHADO, Francisco Valente (1980) Monografia de Vila Verde de Ficalho. Vila Verde de Ficalho: Biblioteca-Museu.
MARCHI, Lia, Piedade, Celina da, e Manuel Morais (2010) Caderno de Danças do Alentejo, vol.1, Pédexumbo.
MARVÃO, António (1955) O Cancioneiro Alentejano: Corais majestosos, coreográficos e religiosos do Baixo Alentejo, Braga: Editorial Franciscana.
NAZARÉ, João Ranita (1979) Música tradicional portuguesa: cantares do Baixo Alentejo, Lisboa: Instituto da Cultura Portuguesa.
NEVES, César & CAMPOS, Gualdino de (1893-1899) Cancioneiro de Musicas Populares, contendo letra e música de canções, serenatas, chulas, danças, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hinos nacionais, cantos patrióticos, cânticos religiosos de origem popular, cânticos litúrgicos popularizados, canções políticas, cantilenas, cantos marítimos, etc., e cançonetas estrangeiras vulgarizadas em Portugal, Vol.1, 2 e 3, Porto, Tipografia Ocidental. Consultável em: http://purl.pt/742
SARDINHA, José Alberto (1992) “Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular realizado em Portugal”, em: http://run.unl.pt/handle/10362/6737
– (2001) A Viola Campaniça: O Outro Alentejo, Sons da Tradição, vol.1, Tradisom.
TORGAL, Luís Reis & Carvalho Homem, Amadeu de (1982) “Ideologia salazarista e «cultura popular» – análise da biblioteca de uma casa do povo”, Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), 3.°4.°5.°, 1437-1464.

Revista A Tradição (criada em 1899 por Ladislau Piçarra e Manuel Dias Nunes). Vol.1 consultável em: http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up