Expressões simbólicas de resignificação da fronteira nas festas patronais de Vila Verde de Ficalho e Rosal de la Frontera

A fronteira luso-espanhola representa hoje um espaço recriado pela nova “mitologia turística”, e pelos fluxos de pessoas (turistas e excursionistas) que a transformaram num lugar de diversão e lazer (Cairo et al, 2018). Desde o Tratado de Maastricht (1992) que o turismo foi oficialmente reconhecido como um dos eixos de desenvolvimento nas periferias rurais da Europa, vinculado à promoção de uma consciência regional que refletiria a ambição de promover a integração através das fronteiras internas da União Europeia (Prokkola, 2007: 124). As populações fronteiriças vivem um tempo de novas modalidades relacionais e de “revitalização festiva” (Boissevain, 1992) com “invenções de tradições” (Hobsbawm e Ranger, 1983) por parte dos municípios e agentes culturais, que tentam resistir ao fenómeno ilustrado pelos diagnósticos socioeconómicos da União Europeia que apontam para o envelhecimento e desertificação do território. Em contextos festivos as povoações fronteiriças são ciclicamente reativadas e resignificadas, principalmente em festas patronais representativas de uma “herança cultural” preservada, misturada na atualidade com as transformações sociais que a acompanham. As festas patronais refletem ainda, as construções simbólicas socialmente estabelecidas e partilhadas pelos membros das comunidades, representativas de uma “teia de significados” (Geetz, 1973) que entrelaça maneiras de pensar, sentir, festejar e imaginar o mundo.

As sequências rituais encontradas nas festas patronais das vilas raianas de Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo – Portugal) e Rosal de la Frontera (Huelva – Espanha) servem para questionar as expressões simbólicas de resignificação da fronteira, associadas à construção de “lugares antropológicos” (Augé, 1992) com significados identitários, relacionais e históricos. A resignificação dos lugares só pode ser entendida no contexto festivo, no sentido em que deixam de estar relacionados com a vida ordinária e quotidiana das populações, para se tornarem atributo de entidades religiosas, insígnias de identidades e significantes de relacionamentos e compromissos interpessoais específicos. Os sentidos dos lugares obedecem a sequências rituais mediadas pelos Santos, que destacam o lugar da fronteira e as relações de vizinhança construídas no tempo longo. Nestes lugares convergem atividades religiosas e lúdicas que reforçam a partilha do que é comum às comunidades: como a cerimónia do recebimento na fronteira, o desfile pelas ruas das vilas; os atos devocionais; a saída ao campo; o caminho; a comensalidade; a liturgia; a procissão; a música e o baile. É ao nível do recorte sensível do que é comum às comunidades, nas suas formas de visibilidade e organização que se coloca a questão da construção dos lugares na relação entre as pessoas, os Santos e a música, como cristalização dos desejos, das esperança e dos imaginários partilhados.

As mulheres e os homens que inventam o mundo

A festa da Senhora das Pazes é organizada por uma Comissão composta por pessoas de diferentes géneros, idades e condição social, nomeados pelos festeiros cessantes, no ultimo dia da festa. A lista de nomeados ascende a mais de uma centena de pessoas, que podem aceitar ou recusar a passagem do testemunho. Numa primeira reunião fazem o balanço da festa anterior, mas discutem principalmente o que pode ser melhorado, porque cada Comissão aspira sempre à melhor festa. Numa ampla assembleia de iguais apresentam-se ideias e distribuem-se tarefas em função das experiências e competências formais e informais de cada um. A Comissão dispõe ainda de instalações, graciosamente cedidas pela Junta de Freguesia, para reuniões e organização de eventos ao longo do ano. A Romería de San Isidro é organizada por um grupo de vinte pessoas de diferentes géneros e idades membros da Hermandad, uma associação formalmente estruturada e hierarquizada com personalidade jurídica, cujo regime de sucessão hereditário foi substituído pela votação pública de listas, apresentadas por grupos de amigos, de quatro em quatro anos. O presidente e os membros da Hermandad são laicos outorgados pelas autoridades eclesiásticas a darem culto à imagem de San Isidro na capela paroquial e na ermida. Para a organização de festas e espetáculos ao longo do ano possuem bens patrimoniais na vila, para além da Casa da Hermandad junto à ermida no campo, destinada a acolher os participantes da festa. Em ambos os casos a maioria dos organizadores não residem em Ficalho nem em Rosal, trabalham e estudam nas cidades mais próximas, ou nas capitais dos respetivos países e outros estão emigrados em países europeus. Mas a distância não os impede de participar e contribuir para as respetivas festas, com os seus saberes e redes de conhecimento. Aos fins-de-semana ou nos períodos de férias anuais, em função da disponibilidade de cada um, colaboram ativamente na organização, na angariação de fundos e durante as festividades  Estes coletivos asseguram a continuidade de uma tradição religiosa-popular, por meio da partilha de experiências, materializadas em diversas iniciativas realizadas ao longo do ano, que permitem custear a contratação de agrupamentos musicais e do fogo-de-artifício que animam e prestigiam as festas.

Comissão de Festas de Ficalho, 2014.

Hermandad de San Isidro, 2014.

A eficácia simbólica dos Santos unificadores

O culto à Senhora das Pazes conta-nos uma história convertida em Lenda, que em tempos remotos, num confronto militar entre portugueses e espanhóis pela defesa das suas fronteiras, surgiu um vulto entre os soldados de ambos os lados, reconhecido como uma visão da Virgem. Daí nasceu a nomeação da Senhora das Pazes, no sentido da reconciliação, de estar em Paz com. Nesse lugar, junto ao rio Chança, que delimita a fronteira luso-espanhola, foi construída no séc. XVI uma ermida, que se transformou num lugar de culto e peregrinação de portugueses e espanhóis. A institucionalização da romaria no séc. XVIII deveu-se à intervenção da 2ª Condessa de Ficalho em pagamento de uma promessa, na sequência de uma contenda entre os seus filhos e os fidalgos de Aroche (Huelva). A Lenda cristalizou-se num mito unificador das comunidades raianas, ciclicamente renovado por meio de rituais, símbolos e expressões musicais.

A romaria de San Isidro foi criada em 1942 pelo pároco de Rosal de la Frontera, para unificar uma comunidade rural profundamente fraturada pelas consequências da repressão franquista durante e após a guerra civil espanhola. O culto popular ao Santo madrileno remonta historicamente aos finais do séc. XII, apesar da beatificação e reconhecimento institucional só ter ocorrido no séc. XVII. San Isidro foi um símbolo religioso útil ao poder municipal de Madrid para cimentar a imagem da nova capital do Império Hispânico, que albergava a corte, para além de um grupo heterogénico de habitantes e forasteiros, muçulmanos e cristãos. A construção social e institucional do Santo, a partir do séc. XVI, como humilde lavrador, nascido numa família de cristãos mozárabes, devoto, solidário e milagreiro, redundou numa aparente coesão religiosa, útil a um poder interessado em consolidar a coesão social (Zozaya Montes, 2011: 12).

Procissão no campo à Senhora das Pazes, 2014.

Procissão no campo a San Isidro, 2014.

  Resignificação simbólica dos lugares no cerimonial de recebimento

O lugar designado por “Azinheira dos Guiões”, situado no limite da vila de Ficalho junto à estrada internacional, representa um lugar com significado. A azinheira centenária que o nomeou já não existe, excepto na memória coletiva, o espaço envolvente é hoje ocupado por um posto de gasolina e um restaurante com parque de estacionamento, que preenchem as necessidades da vida quotidiana das populações. No contexto festivo, este lugar liminar adquire significado identitário e relacional, por meio do cerimonial de recebimento da Comissão de Festas de Ficalho aos grupos de festeiros e respetivos guiões das povoações vizinhas, convidados para a festa. Por meio de um ritual em que os guiões se tocam, trocam-se gestos e sentimentos fraternos, canta-se e renovam-se as relações de vizinhança. A Hermandad de San Isidro retribui o recebimento no “lugar da aduana”, que marca o limite da vila e recorda o poder do Estado na fronteira. A aduaneira foi desativada com a abertura das fronteiras, e o espaço reabilitado como posto de controlo da Policia de Transito. No contexto festivo representa o lugar da troca e da partilha de sentimentos de pertença comunal entre populações fronteiriças.

Azinheira dos Guiões, V.V. de Ficalho, 2014

Lugar da aduana, Rosal de la Frontera 2014.

Ritual de agregação no espaço das comunidades 

Ao cerimonial de boas vindas segue-se o desfile dos grupos de festeiros, com os seus pendões, insígnias e estandartes pelas ruas das vilas. Em Ficalho o cortejo foi encabeçado pelo grupo de bombos de Vila Nova de São Bento que anuncia a chegada dos convidados, seguidos da Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Reguengos, dos membros da Comissão de Festas com o guião da Senhora das Pazes e São Jorge, dos festeiros convidados e por ultimo a Banda Filarmónica de Serpa. Alguns residentes assomam-se às portas ou janelas para assistirem ao desfile, outros juntam-se aos participantes até ao largo da Igreja Matriz. O percurso pelas ruas da vila integra simbolicamente os vizinhos no espaço da comunidade, onde são saudados e recebidos pelas autoridades e associações locais, em lugares com significado político e social.

Em Rosal de la Frontera o desfile até à Igreja Matriz do Rosal é encabeçado por um grupo de tamborileiros, seguidos dos membros da Hermandad com o guião de San Isidro e seus estandartes, e dos representantes da Comissão de Festas de Ficalho com o seu guião. Ao longo do percurso os santos são saudados fervorosamente pela população, que se junta ao cortejo cantando ao som de pandeiretas e tambores, numa manifestação coletiva de exaltação festiva, que mistura sentimentos e emoções expressas na letra de uma canção popular espanhola.

(…)

Hay un pueblo madre que Rosal se llama

Tiene a San Isidro como su patrón

Él es deseado en su romería

Allá le acogimos llenos de ilusión.

Qué bonito cuando llega

La vecina Portugal

Con su Virgen de las Paces

Como signo de amistad.

Consejero San Isidro

El cónsul de la amistad

De sentirnos tan unidos

Como rosas de un Rosal.

(autoria da Hermand de San Isidro, 2014)

Lugares liminares de religiosidade popular: as ermidas

As ermidas no campo, situadas na periferia do espaço comunitário das vilas, são lugares alternativos ao universo sagrado, representativos de uma religiosidade popular não institucional. Em torno das ermitas expressam-se crenças e sentimentos, por meio de atos de devoção, trocas de promessas e oferendas aos Santos. E ao longo do caminho até às ermidas, na missa campal e nas procissões os santos são aclamados e evocados em canções populares.

Moda da Senhora das Pazes

(…)

Vestida de branco

Milagres que fazes

De negro o teu manto

Que eu adoro tanto

Senhora das Pazes.

 

Lá na sua ermida

Lá no meio do campo

O povo delira

Ao ver-te tão gira

vestida de branco.

(autoria de Maria Rosa Campaniço, do Grupo coral feminino “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho).

Ermida da Senhora das Pazes, 2014.

Ermida de San Isidro, 2014.

Lugares de troca e de partilha: “misturam-se as vidas, misturam-se as coisas”

As romarias, como outros tipos de festas, desempenham funções religiosas e lúdicas, mas também cívicas e políticas que suscitam sentimentos de pertença e de identidade grupal, local e nacional (Homobono Martínez 2012: 43). Os ritos e os símbolos que constituem os enunciados de ambas as romarias não variam significativamente em ambos os lados da fronteira. O recebimento, os atos devocionais, a saída ao campo, o caminho, a comensalidade, a liturgia, a procissão, a música e o baile obedecem a sequências rituais comuns. Cada sequência ritual representa um evento integrado e padronizado de um sistema de interações sociais, cujo significado não pode ser entendido ou analisado separadamente das restantes componentes do sistema cultural. Trata-se, principalmente de misturas, como nos ensinou Marcel Mauss (2001). Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas, misturam-se as vidas, e as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e misturam-se. Esta mistura, como principio regulador da troca e da partilha, é expressada pelos participantes nos seguintes termos:

“(…) Este ritual de Santo Isidro com Nª Senhora das Pazes é único, é difícil de explicar, porque ali não há idades, não há raças, não há nacionalidades, há uma entrega, uma dedicação, uma união” (Lita,  Comissão de Festas, Abril de 2014).

“(…) Es una cosa que me movió desde chiquitita. Dicen las sevillanas que San Isidro es novio de la Virgen de las Paces (riso) enamorado de la Virgen de las Paces. Es un encuentro entre dos países,  y una amistad bonita entre dos países, entre Rosal e Ficalho  (Glória Charca, natural de Rosal, Maio de 2014).

“(…) Es una relación transfronteriza muy bonita, algo nuevo que antiguamente y históricamente no se sentía, era todo lo contrario, era bélico, y ahora es Paz, amistad y armonía (Juan António Fuentes, natural de Huelva, Maio de 2014).

“(…) Acho que não há fronteiras, acho que há uma ligação muito humana, tem a ver com a Humanidade, isto devia reverter era para tudo, não haver guerras, diferenças, distinções de raças” (João, Comissão de Festas, Abril de 2014).

“Es una manera de unir dos pueblos, tenemos hablas distintas, pero vivimos la fiesta igual” (Maria Isabel García, natural de Rosal, Maio de 2014).

Romaria da Senhora das Pazes, 2014.

Romaria de San Isidro, 2014.

 Representações sociais das festas e seus rituais

No tempo ordinário da vida quotidiana o sentido de lugar funciona pela agregação de pessoas que constroem e articulam referentes identitários em termos de pertença a um lugar particular, estabelecido mediante a oposição a outros lugares representados como alheios. No tempo excecional festivo o sentido de lugar dilata-se para integrar elementos simbólicos de grupos distintivos num coletivo unificador. A resignificação dos lugares, idealizados, reinventados e atualizados, permanecem “afetivamente” ligados à memória coletiva, como herança cultural de comunidades rurais e raianas. As representações sociais das festas e seus rituais, combinam dialeticamente a resistência ativa de afrontamento ao Estado e à Igreja, “nos seus esforços reguladores, de captura e domesticação sempre imperfeita” (Sanchis, 1983: 374). Nesta medida, as festas populares refletem as próprias vidas das pessoas, atravessadas por tensões e ambiguidades, repletas de idealizações entre um passado enaltecido e um presente gerador de sentidos, inspirador de atividades coletivas, de emoção globalizante, de comunicação e de participação, que aspira a um futuro de igualdade e fraternidade.

Referências bibliográficas

Augé, Marc. (1992) 2006. Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora.

Boissevain, Jeremy (dir.). 1992. Revitalizing European Rituals. London: Routledge.

Cairo, Heriberto (org.). 2018. Rayanos y Forasteros: Fronterización e identidades en el Limite Hispano-Portugués. Madrid: Plaza y Váldes Editores.

Geertz, Clifford. 1973. The Interpretation of Cultures: Selected Essays. New York: Basic Books.

Hobsbawm, Eric y Ranger, Terence (ed.). 1983. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press.

Homobono Martínez, José Ignacio. 2012. “Dimensiones nacionalitarias de las fiestas populares: lugares, símbolos y rituales políticos en las romerías vascas”, Zainak. 35: 43-95.

Mauss, Marcel (2001). Ensaio sobre a Dádiva, Lisboa: Edições 70.

Prokkola, E.  2007. “Cross-border Regionalization and Tourism Development at the Swedish-Finnish Border: «Destination Arctic Circle»”. Scandinavian Journal of Hospitality and Tourism, 7, 2: 120-138.

Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020. URL: http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf. [Consulta: 12 de Março de 2014].

Roteiros do Baixo Guadiana. 2013. Andaluzia: Junta de Andalucia/Programa de Cooperação Transfronteiriça España−Portugal 2007-2013/UE-FEDER. URL: http://www.juntadeandalucia.es/turismoycomercio/publicaciones/143368212.pdf%5BConsulta: 12 de Março de 2014].

Sanchis, Pierre. 1983. Arraial: Festa de uma Povo As Romarias Portuguesas, Lisboa, Publicações D .  Quixote.

Zozaya Montes, Leonor. 2011. “Construcciones para una canonización: reflexiones sobre los lugares de memoria y de culto en honor a San Isidro Labrador”, Tiempos Modernos, 22.

 

Vídeos realizados no ámbito do trabalho de campo em 2014:

– “El cante y el baile en la Romería de San Isidro El Labrador”, Rosal de la Frontera (Huelva), 17 e 18 de Maio: http://www.youtube.com/watch?v=2DYucDa6-CU

– “Tamborileros «Los Bravo» en la Romería San Isidro El Labrador”, Rosal de la Frontera (Huelva), 17 e 18 de Maio: http://www.youtube.com/watch?v=3I1Wp76INMM

– “Baptismo – Romería de San Isidro El Labrador (Rosal de la Frontera – Huelva)”, 18 de Maio: https://www.youtube.com/watch?v=VtC-mWbE1qQ

– “O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)”, 26 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=tEED1kSR1Qg

– “«Os Amigos da Pinguinha» – na Festa da Senhora das Pazes” (Vila Verde de Ficalho, Baixo Alentejo): https://www.youtube.com/watch?v=rCDQqzmFDZI

– “El cante y el baile na Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 27 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=fcN8GFNormw

– “RITM’ARTES – Festa da Senhora das Pazes (Vila Verde de Ficalho – Baixo Alentejo), 25 a 27 de Abril: https://www.youtube.com/watch?v=AQmAQKOGOSs

– “Uma festa transfronteiriça – Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 25 a 27 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=SD2tyokqQFE

– “O Cante na Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho, 25 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=lpDUSmvVe2M

– “O tamborileiro na festa de Nossa Senhora das Pazes – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 24 de Abril: https://www.youtube.com/watch?v=Ij5cigD6Zq8

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional de Estudos sobre Memórias, Sons e Textos: festas e representações, entre a subversão e a patrimonialização, organizado pelo INET-md e IHC na NOVA FCSH. Lisboa, 19 e 20 de abril de 2018.

 

Os tamborileiros do Baixo Alentejo – memórias e práticas da cultura

As fontes históricas mostram-nos a presença do tamborileiro, desde a Idade Média, em contextos festivos e cerimoniais. No Baixo Alentejo, as funções do tamborileiro estão vinculadas às festas patronais e aos peditórios. No entanto, a partir da segunda metade do século XX, a prática musical do tamborileiro sofreu um significativo decréscimo quantitativo e qualitativo, comparativamente a décadas anteriores. Na revista A Tradição (1899-1900) (http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up) encontramos artigos de Dias Nunes e A. de Mello Breyner dedicados ao tamborileiro, designando-o como “o homem que toca tamboril e gaita em todas as festas religiosas de arraial (cirios)” (1982: 71-72). A diversidade do repertório, associado aos peditórios, às procissões e às danças nos arraiais, mereceu a transcrição para partitura do músico e compositor Manuel de Jesus Gentil-Homem Valladas.

Partituras e foto de um tamborileiro publicadas na revista “A Tradição”, vol. II, 1900

Partituras e foto de um tamborileiro publicadas na revista “A Tradição”, vol. II, 1900

Em Portugal, o conjunto é encontrado nas Terras de Miranda, Trás-os-Montes, e na raia do Baixo Alentejo. No Alentejo a flauta do tamborileiro tem três furos e subordina-se aos princípios acústicos comuns a instrumentos idênticos, usados na Europa na Idade Média. Anthony Baines (1957) em Woodwind Instruments and their History diz-nos que “as notas fundamentais da flauta de tamborileiro podem-se tocar, mas não são muito usadas. A escala começa uma oitava acima, com o 2.º harmónico e continua, por intensidade de sopro, pelo 3.º, 4.º e 5.º harmónicos e mesmo mais. Neste instrumento, o intervalo maior entre dois registos é de uma quinta, o 2.º para o 3.º harmónico, pelo que os três furos são suficientes para se conseguir as notas necessárias para fazer uma escala” (consultável em: https://ia600506.us.archive.org/13/items/woodwindinstrume000787mbp/woodwindinstrume000787mbp.pdf)
Os instrumentos portugueses assemelham-se aos utilizados no outro lado da fronteira.  O tambor alentejano possui grandes dimensões como as de seus vizinhos, e tanto o pito rociero (Andaluzia) como a gaita alentejana costumam utilizar chifre na cabeça da flauta, revestindo o bico e o bisel, assim como cinzelados que emolduram os dois furos superiores do instrumento.

Félix, tamborileiro de Almonaster la Real (Huelva)

Félix, tamborileiro de Almonaster la Real (Huelva)

João Caçador, tamborileiro de Barrancos (baixo Alentejo)

João Caçador, tamborileiro de Barrancos (Baixo Alentejo)

Na década de 60, Ernesto Veiga de Oliveira Oliveira descreve as funções e práticas musicais do tamborileiro de Barrancos, nas festas de Santa Maria; em Santo Aleixo da Restauração, nas festas de Santo António e da Tomina; e em Vila Verde do Ficalho, na festa de Nossa Senhora das Pazes. Actualmente os tamborileiros acompanham os peditórios, percorrendo todas as casas, com os festeiros, que transportam o guião, e com o fogueteiro. O tamborileiro de Santo Aleixo ainda participa nas procissões de Santo António e na Nossa Senhora das Necessidades, encabeçando o cortejo. Os mais idosos recordam o tamborileiro como “o mestre-de-cerimónias”, que era consultado pelos festeiros por conhecer todas as fases do processo ritual, assim como os percursos pelas ruas das vilas.  Pelos temas gravados, no Arquivo Sonoro de Ernesto Veiga de Oliveira, que serviu de base à obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, os tamborileiros da década de 60 também tocavam a Alvorada na madrugada dos dias de festa (que foi substituída por bandas filarmónicas), e tocavam fandangos e corridinhos nos bailes dos arraiais. Como os temas executados por Romão Estradas, gravados em 1961, na Festa da Senhora das Pazes, em Vila Verde de Ficalho

Na década de 70 Michel Giacometti dedica o 6º episódio da série documental “O Povo que Canta” (emitido a 18 de Outubro de 1971) aos tamborileiros do Baixo Alentejo. O sexto episódio é um tributo a Ernesto Veiga de Oliveira, e foi realizado na zona fronteiriça dos concelhos de Serpa, Moura e Barrancos. Para o documentário foram gravados três tamborileiros (dois em Serpa e um Barrancos) e resgatado o som de um registo de Michel Giacometti, de 1965, em Santo Aleixo da Restauração, com o tamborileiro António Oliveira Lopes (1915-1984), conhecido por “Guinapo”. Giacometti entrevista o tamborileiro Bento José Romeu, de 65 anos, natural de Aldeia Nova de São Bento, vaqueiro no Monte de Belmeque (Vale de Vargos), que foi tamborileiro na Aldeia Nova de São Bento até à década de 50. Este tamborileiro, para além de acompanhar os cerimoniais religiosos tocava em festas, ditas profanas, como os bailes de Entrudo.

Em Barrancos o tamborileiro é designado por “Bibo” e a sua função está reduzida ao Peditório no dia de Santa Maria. Na tarde do dia 14 de Agosto percorre as ruas principais da vila anunciando com o seu toque o peditório que vai decorrer no dia seguinte. Ao longo do tempo o tamborileiro de Barrancos foi visitado e revisitado por antropólogos e etnomusicólogos. Em 1961, Ernesto Veiga de Oliveira gravou e fotografou o tamborileiro António Torrado. Nas fotos, publicadas na obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, o tamborileiro António Torrado estava acompanhado pelos Festeiros: António Marques, Carlos Durão, Carlos Ramos Nazaré, Domingos Fernandes Bossa e Manuel Venegas Gala (2000: 128-129). As gravações recolhidas fazem parte do Arquivo Sonoro que serviu de base ao livro, e foram convertidas para MP3 por Domingos Morais. No Arquivo Sonoro encontramos dois temas de António Torrado:

“Vivo da festa de Santa Maria, Alvorada”: http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo017.mp3
“Toque da Procissão”:http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo018.mp3

Em 2014, João Caçador (Beja,1999), músico na Banda Filarmónica Fim de Século de Barrancos, retomou o ritual do peditório, executando o toque: “Vivo da festa de Santa Maria” pelas ruas da vila. Em 2007 aprendeu a tocar flauta e tambor com Marco Cardoso, que por sua vez herdou a arte do tamborileiro José Ramón, já falecido. José Ramon foi gravado por Michel Giacometti para o documentário “Os tamborileiros do Baixo Alentejo”, que já referimos. No dia 15 de Agosto de 2014, do nascer ao pôr-do-sol acompanhámos e gravámos o tamborileiro João Caçador e os festeiros Alexandre Baleizão, Hélder Segão, Manuel Cortegano, Manuel Veríssimo e Sérgio Segão, que levaram o guião de Nossa Senhora da Conceição de casa em casa, recolhendo as dádivas dos barranquenhos.

Em Santo Aleixo da Restauração o tamborileiro está associado às festividades de Santo António e da Tomina, assim como aos peditórios de Santo António e Santa Maria, com uma função cerimonial que perdeu ao longo do tempo a sua componente musical. António Maria Cuco (1901-1976) foi o primeiro tamborileiro a ser gravado e fotografado por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira: “Recordo a visita à casa do tamborileiro António Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restauração, a sua extrema modéstia e esmero, de uma só divisão, com chão de xisto límpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a cozinha na superação rara dos sinais do fogo, a um dos lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo. Neste cenário da maior simplicidade destacava-se uma pequena arca de pinho que o António Maria abriu pondo a descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem precioso, o pífaro que agora integra esta colecção.” (Benjamim Pereira, em Instrumentos Musicais Populares Portugueses). O “Toque do tamborileiro” executado por António Maria Cuco faz parte da colecção dos Arquivos Sonoros: http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo240.mp3
Na festa da Tomina de 2014 foi António Grilo (Santo Aleixo da Restauração 1975), neto de António Maria Cuco e filho do tamborileiro Joaquim Grilo (o Ficalheiro) que desempenhou, pela primeira vez, a função de tamborileiro, para manter a continuidade do ritual. Contudo, na memória dos mais idosos permanece o “toque do tamborileiro” do seu avô.

O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho perdeu algumas funções rituais, apesar de acompanhar o guião da Nossa Senhora das Pazes e S. Jorge no peditório para a Festa, a 15 de Agosto, e no agradecimento dos Santos à população, assinalando o início das festividades no fim-de-semana de Pascoela. O tamborileiro de 2014 foi o festeiro Francisco Galhoz (Santo Aleixo da Restauração, 1969), barbeiro de profissão e cantador no Grupo Coral “Os Arraianos de Ficalho”. Na infância acompanhava o ritual do tamborileiro de Santo Aleixo, que incorporou como prática musical e performativa.  Como membro de diversas comissões de festas assumiu a função de tamborileiro, de improviso, realizando um sonho de criança. Mas, os mais idosos recordam os atributos dos antigos tamborileiros, e não reconhecem qualidades nos jovens que asseguram a continuidade de uma prática ritual com significado.

O património sonoro e musical registado por Ernesto Veiga de Oliveira e Michel Giacometti está práticamente extinto no Baixo Alentejo. Em Trás-os-Montes, nas Terras de Miranda, o duo flauta e tamboril vai ser padronizado. Segundo os agentes culturais envolvidos, o processo de “padronização” vai permitir a sua divulgação e utilização por novos músicos, para que esta prática musical, “ligada à pastorícia transmontana não se perca”: http://www.publico.pt/local-porto/jornal/flauta-e-tamboril-nordestinos-vao-ser-padronizados-27596891

Os processos de padronização de instrumentos tradicionais, ou de patrimonialização de práticas culturais, estão directamente relacionados com o movimento de revivificação da música de matriz rural, iniciado na década de 90 por agentes urbanos que reivindicam valores populares. Josep Martí (1996) designou este fenómeno sociocultural de “folklorismo”, de instrumentalização da tradição, considerando as suas finalidades basicamente de tipo estético, ideológico e comercial (Martí 1996: 19). Nas povoações raianas do Baixo Alentejo o tamborileiro permanece, inserido em contextos festivos e cerimoniais com sentido e significado para as populações locais. No entanto, à excepção do tamborileiro de Barrancos, que reproduz o toque “vivo da festa de Santa Maria” transmitido de geração em geração, os tamborileiros observados em Santo Aleixo da Restauração e em Vila Verde de Ficalho representam uma figura simbólica, que permanece na memória colectiva como herança cultural das populações raianas.

João Caçador, tamborileiro de Barrancos, 2014.

João Caçador, tamborileiro de Barrancos, 2014.

 

Francisco Galhoz, tamborileiro de Vila Verde de Ficalho, 2014.

Francisco Galhoz, tamborileiro de Vila Verde de Ficalho, 2014.

 

Francisco Galhoz, tamborileiro de Vila Verde de Ficalho, 2014

António Grilo, tamborileiro de Santo Aleixo da Restauração, 2014.

 

Una romería transfronteriza en Rosal de la Frontera (Huelva)

Las relaciones en la frontera hispano-portuguesa fueran construidas al largo del proceso histórico, ancladas en interdependencias económicas, relaciones de parentesco y de amistad. En un catalogo turístico de la Junta de Andalucía podemos leer: “el carácter fronterizo de Rosal de la Frontera ha posibilitado una cierta identidad social y cultural con Portugal, cuya influencia se puede palpar en cada uno de los rincones de este tranquilo municipio”. En la actualidad, las relaciones fronterizas son mantenidas y re-significadas “desde arriba”, por intervención del poder político (local y supralocal), y “desde abajo”, por la interacción social entre las populaciones rayanas. En una zona rural desertificada de personas, las festividades y prácticas rituales fortalecen simbólicamente la continuidad de las relaciones entre los pueblos de Rosal e Vila Verde de Ficalho. La Romería de San Isidro Labrador, la más importante fiesta celebrada en Rosal de la Frontera, es una romería de carácter transfronterizo, invitando a la participación de la Comisión de Fiestas de Nuestra Señora das Pazes, de Vila Verde de Ficalho. Las relaciones entre los dos santos reflejan, simbólicamente, las relaciones de amistad entre dos pueblos vecinos, justificadas en diversas narrativas.

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Romería transfronteriza – Romería San Isidro El Labrador (2014)

El santo patrón, San Isidro, cuyo nombre era Isidro de Merlo y Quintana, nació en torno al 1082 en Madrid, durante el reinado de Alfonso VI, y falleció en el año 1130. Sus padres eran de clase humilde, y una de las primeras ocupaciones de Isidro fue la de pocero, o sea, cavar pozos, al servicio de la familia Vera, hasta que se trasladó a trabajar a Torrelaguna, donde contrajo matrimonio con María Toribia. Fruto de su matrimonio tuvieron un hijo llamado Illán. Al cabo de unos años la familia regresó a Madrid, para cuidar las tierras de la familia Vargas. En ese momento, cuando Isidro realizó las tareas de labrador, pasa a ser conocido popularmente como “Isidro labrador”. Las narrativas populares dicen que la providencia hacía que su cosecha siempre fuera muy grande, y que compartía lo que tenía con los hombres, las aves y otros animales. Debido a su labor, se le considera patrono de los que trabajan la tierra, siendo venerado en varios pueblos de España y América latina, con procesiones en las que se bendicen los campos. En Andalucía, Extremadura y Castilla-La Mancha se hacen romerías en honor al Santo, acompañado de carretas, caballos, carrozas y muchos romeros, como en Rosal de la Frontera. La fiesta, con sus rituales refuerza la identidad cultural de los rosaleños, siendo transmitida a las generaciones futuras.

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El sábado 17 de mayo los tamborileros “Los Bravo” condujeron la alegre diana por las calles rosaleñas, la Hermandad y los Mayordomos entrantes, los Hermanos “Charca. Posteriormente la Comisión de Fiestas de Nuestra Señora Das Paces y San Jorge (Vila Verde de Ficalho) fue recibida junto a la frontera, invitada a integrar el proceso ritual de la fiesta. En la iglesia, el Coro Romero dedicó un canto a la unión entre los dos pueblos, y en la calle se hicieron muchas saludaciones a los dos santos. La romería se celebra junto a la ribera del Alcalaboza, a unos ocho kilómetros del pueblo de Rosal, en dirección a Huelva. Allí se encuentra la Ermita de San Isidro y las casetas arregladas de acuerdo con la condición social de sus propietarios. La romería está integrada en el Plan Romero de la Junta de Andalucía, que garantiza la seguridad y el control del tráfico en la carretera. El programa de fiestas del domingo 18 de mayo, empezó con la Diana Romera interpretada por los tamborileros “Los Bravo”. Tras la misa romera, oficiada por el párroco polaco Tomász Paluch, y cantada por el Coro Romero, los Mayordomos, conocidos cariñosamente en el pueblo como “Los Charcas”: Manuel, Gloria, Mª Luisa y Carmen Romero, ofrecieron una comida a todos los participantes y visitantes, en la Casa de la Hermandad. Por la tarde, en torno a las 20.00 horas, se realizó la procesión sin párroco, del Santo Rosario en el recinto, con ofrendas florales y cantares a San Isidro. La romería proporciona un espacio e un tiempo de expresión y exaltación cultural, de reencuentro, compartido con familiares y amigos. La música y la danza están presentes en todos los rituales de la fiesta, y emergen con espontaneidad en el proceso de interacción social. Las voces del Coro Romero San Isidro acompañan la celebración de rituales religiosos. Los tamborileros conducen los desfiles ceremoniales, pero también están presentes en los momentos más lúdicos de la fiesta. Las dinámicas musicales de las gentes de todas las edades, añaden al ambiente festivo con sus tambores, cañas, panderetas, el cuerpo y la voz, cantando y bailando fandangos y sevillanas.

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El cante y el baile – Romería de San Isidro El Labrador (2014)

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Más allá del programa religioso-popular de la romería, fuimos testigos de un baptismo, en la ribera del Alcalaboza, muy característico de la romería de Rocío. En este ceremonial, paródico, Juan Antonio Fuentes, nacido en Huelva en 1962, fue simbólicamente integrado en la comunidad romera rosaleña, a que pertenece su mujer, María Isabel. El matrimonio tiene dos hijas, y viven en Huelva, aunque Isabel conserve su casa en Rosal. Las fiestas sirven para la reunión familiar, para compartir identidades e momentos lúdicos, repletos de afectos y significados.

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Baptismo en la Romería de San Isidro El Labrador (2014)

 

O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)

O tamborileiro existe desde tempos remotos, nos mais diversos países e regiões. A sua função festiva perdura  em várias zonas da Espanha (Extremadura e Andalucía) e da França. Em Portugal, o tamborileiro permanece em duas zonas fronteiriças distintas: nas aldeias raianas do distrito de Miranda do Douro (Trás-os-Montes) e do distrito de Beja (Baixo Alentejo). O tamboril e a flauta, tocados pelo tamborileiro, formam um conjunto instrumental unitário e coerente, bastante raro na década de 60, quando Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira organizaram a colecção de instrumentos populares portugueses. No trabalho de pesquisa encontraram tamborileiros nas aldeias raianas de Terras de Miranda, com funções de carácter cerimonial, profanas e lúdicas, e nas aldeias raianas do Baixo Alentejo, com funções cerimoniais em festas religiosas patronais e ritualizadas (em Instrumentos Musicais Populares Portugueses, p.259). Na década de 70 Michel Giacometti revisitou os tamborileiros alentejanos de Vila Verde de Ficalho, Santo Aleixo da Restauração e Barrancos, anotando: “o tamborileiro pode ser definido como um instrumentista popular que toca simultaneamente um tamboril e uma flauta, estando a melodia a cargo da flauta e sendo o acompanhamento executado no tamboril com uma única baqueta” (guião do documentário “O Povo que Canta” 6.º episódio, dedicado aos tamborileiros do Baixo Alentejo, emitido na RTP a 18 de Outubro de 1971 (em http://www.michelgiacometti.com/pdf/volume_2.pdf).

Em Vila Verde de Ficalho  o tamborileiro participa no peditório para a Festa da Senhora das Pazes, a 15 de Agosto, acompanhando os Festeiros que transportam o Guião, percorrendo as ruas da vila.

tamborileiro de Ficalho, 2013 peditório de santa Maria

No dia da festa, pela manhã, o tamborileiro tocava a “Alvorada”, alternando o seu toque com a música da banda filarmónica convidada para abrilhantar as festividades. De tarde, o tamborileiro acompanhava a procissão ao lado do Guião e atrás da cruz. Na obra Monografia de Vila Verde de Ficalho, Francisco Valente Machado escreveu: “o tamboril, de som monótono mas bem conhecido, era tocado, simultaneamente com a respectiva gaita, por ocasião da Festa das Pazes, ao acompanhar o guião nas cerimónias, como nos momentos em que ele parecia em público durante os peditórios que todos os anos se fazem a favor da mesma festa. Deixou fama, como tamborileiro, o velho Lança a quem sucedeu o seu filho, César Lança, que também foi bom, mas sem ter igualado os merecimentos paternos neste domínio” (p. 288).  Em Ficalho o tamborileiro tinha uma função cerimonial e lúdica, como testemunham os temas musicais “Alvorada”, “Procissão” e “Corridinho” gravados em 1961. Cada tema correspondia a diferentes momentos da sua participação na Festa, com  uma fórmula ritual diferenciada da música tradicional da região. Nos arquivos sonoros de Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira (em: http://alfarrabio.di.uminho.pt/arqevo/arqetnoevo.html), encontramos registos destes temas interpretados pelos tamborileiros Romão Estadas e Manuel José Celeiro, gravados na Festa da Senhora das Pazes de 1961.

O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho perdeu algumas funções rituais, mas continua a acompanhar o Guião da Senhora das Pazes e S. Jorge no peditório, e no agradecimento dos Santos à população, assinalando o início das festividades no fim-de-semana de Pascoela.

O tamborileiro de 2014 foi o festeiro Francisco Galhoz, nascido em Santo Aleixo da Restauração em 1969. Na infância acompanhava o ritual do tamborileiro de Santo Aleixo, que incorporou como prática musical e performativa. Em 1991 fixou-se em Vila Verde de Ficalho, terra natal da mãe, e aí casou e construiu a sua vida. Ao longo dos anos desempenhou diversas atividades, atualmente é barbeiro de profissão e faz parte do Grupo Coral “Os Arraianos de Ficalho”. Como membro de diversas comissões de festas assumiu a função de tamborileiro, de improviso, realizando um sonho de criança. Os mais idosos recordam os atributos dos antigos tamborileiros, e não reconhecem qualidades nos jovens que, de forma espontânea, asseguram a continuidade de uma prática ritual com significado.

 

 

Uma festa transfronteiriça em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)

A Festa da Senhora das Pazes remonta historicamente ao séc. XVIII, segundo o estudioso local Francisco Valente Machado, que atribui a iniciativa à 2ª Condessa de Ficalho, na sequência de uma contenda entre os seus filhos e os fidalgos de Aroche. A Ermida da Senhora das Pazes está identificada como arquitectura religiosa do séc. XVI, manuelina, barroca, popular, lugar de peregrinação característica da popularização dos modelos manuelinos. A construção e localização junto ao rio Chança, que delimita a fronteira luso-espanhola, é justificada na “Lenda da Nossa Senhora das Pazes” que permanece na memória colectiva: “no tempo da guerra de Espanha com Portugal, houve uma grande batalha em Ficalho e durante a batalha apareceu uma Santa no cimo de uma azinheira e acabou com a guerra. Então nesse sítio foi construída uma capela a capela da Nossa Senhora das Pazes. Ainda hoje é a padroeira da povoação e a capela está localizada no lugar onde supostamente apareceu a Santa”.

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A história da Senhora das Pazes cristaliza-se num mito fundador da comunidade fronteiriça de Vila Verde de Ficalho. Para o antropólogo William Kavanagh, “las fronteras constituyen espacios – y lugares – de producción cultural, donde se crean, y a la vez se destruyen, diversos significados. La frontera no es una entidad estática, sino que es algo que constantemente se construye (y reconstruye) de diversas maneras” (Kavanagh et al, 2009: 153). As festividades servem para reconstruir e resignificar o lugar da fronteira, desarticulado pelas transformações no mundo rural, pelos  fluxos migratórios e pela abolição das linhas divisórias, renovando profundas e duradouras continuidades culturais. A aparição de uma figura sobrenatural, que intervém simbolicamente na vida das comunidades de Ficalho e Rosal de la Frontera, permite a incorporação de valores transmitidos oralmente, de geração em geração, por meio da memória colectiva e de práticas rituais e performativas. Os rituais e símbolos festivos dão sentido e significado à vida das pessoas, perpetuando e reativando ciclicamente o relato histórico do qual são o reflexo.

A Festa é organizada por uma Comissão, composta por pessoas de diferentes géneros e idades, nomeados pelos festeiros cessantes, entre os quais se distribuem tarefas e responsabilidades de acordo com as suas competências. Ao grupo da Comissão de Festas compete assegurar a continuidade de uma tradição religiosa-popular, por meio de diversas iniciativas, ao longo do ano, que permitam custear o evento. A romaria e o arraial que se realizavam, outrora, na segunda-feira de Pascoela, exigiram uma recalendarização ajustada à realidade de uma comunidade migrada.  A festa religiosa e popular no campo, em torno da Ermida, reúne um conjunto de símbolos e rituais que reforçam as relações de vizinhança. A música e a dança estão presentes no arraial, como expressão da cultura popular de ambos os lados da fronteira, como as sevillanas entoadas de improviso pelos vizinhos de Rosal de la Frontera.

Como nos diz John Blacking, (1979) a música e a dança encontram nas festas o tempo e o espaço privilegiado para a “invenção e reinvenção da cultura através da interacção social”, como campo criador de significados. O cante alentejano, as sevillanas, o rebombar dos bombos, e as modas para bailar interpretadas por um grupo de música tradicional de Vale de Vargo, são modelos de transmissão e construção identitária que encontramos nesta festa transfronteiriça.