Práticas culturais contra-hegemónicas na “sociedade do espectáculo”

O neoliberalismo suscitou uma formidável crença na propriedade privada e no livre comércio e fez retroceder os limites do não mercantilizável, ao sacralizar o poder dos mercados sob “o signo da liberdade” (Bourdieu 1998). Os efeitos imediatos desta acção destruidora não é apenas a violência estrutural do desemprego e da precariedade, mas também o desaparecimento progressivo dos universos simbólicos de produção cultural, pela imposição intrusiva dos valores comerciais (Bourdieu 1998, Comaroff e Comaroff 2001, Harvey 2007, Ortner 2011). Neste contexto, a mercantilização da cultura como espectáculo e lazer, assim como a exploração da autenticidade e da criatividade popular, “pressupõe atribuir um preço a coisas que na realidade nunca foram produzidas como mercadorias” (Harvey 2007, 182).

A produção simbólica sobre a lógica do consumo capitalista consolidou valores, conceitos e práticas que sustentam um estilo de vida e de cultura hegemonicamente articuladas com as relações estruturantes. A centralidade do simbólico coloca a imagem, a representação e o espectáculo enquanto características reforçadas pela contemporaneidade. A realidade fragmentada é marcada pela subjetividade e pela arbitrariedade, na escolha dos seus parâmetros constitutivos. No campo simbólico, a realidade é o universo do facto editado, da verdade construída, do desejo sugerido e do consumo intensificado, enquanto prática cultural e parâmetro identitário” (Harvey, 1996: 259-260). A mutabilidade constante, a velocidade e a superficialidade com que a fragmentação da vida quotidiana é apresentada, estabelece uma continuidade com a grande narrativa neoliberal, que passa pela consolidação e universalização da lógica da produtividade e pela mercantilização do simbólico.

A sociedade contemporânea, apesar de cultivar religiosamente o passado, perdeu a capacidade de conhecê-lo, ao viver o “presente perpétuo” (Debord, 1995: 80) de um quotidiano marcado pela superficialidade de conceitos e valores, pelo carácter descartável das suas recriações, e pelo estímulo consumista. A “sociedade do espectáculo” (Debord, 1967) do consumo e da fragmentação representa a negação da própria humanidade na procura da felicidade, por meio da destruição da liberdade de escolha, totalmente preenchida no imaginário pela satisfação garantida, a partir de um real fabricado e de um mundo saturado de imagens. No entanto, “o espectáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (Debord 1995, 8). O debate que proponho articula a interacção global da “sociedade do espectáculo”, como parte decisiva da hegemonia política, com as práticas culturais contra-hegemónicas preservadas pelas comunidades, tomando como objecto empírico as estudantinas, ou danças carnavalescas da raia do Baixo Alentejo, que surgem da espontaneidade e criatividade de grupos não institucionalizados nem mediatizados.

Nas sociedades rurais alentejanas o Carnaval foi uma espécie de “para-raios” para todo o tipo de tensões sociais, que permitia aos trabalhadores rurais revelarem no espaço público as suas aspirações por meio de canções. Até ao 25 de Abril de 1974 os versos das Estudantinas passavam pelo crivo da censura do Presidente da Câmara, ou do regedor, e eram cantados por grupos de homens pelas ruas das vilas no domingo e na terça-feira gorda. O conteúdo de crítica social visava acontecimentos locais, e os comportamentos dos vizinhos sem os nomear, mas alguns versos eram especialmente dedicados às elites rurais:

(…)

O senhor António Vasquez

Homem rico lavrador

Homem de bom coração

Para fazer um favor

É amigo da pobreza

Fala com toda a gente

Trata bem os seus criados

E andam todos contentes.

(…)

(Versos da Estudantina de Barrancos, década de 1940,  recordada por Manuel Agudo dos Santos em 2008)

A representação realizava-se no espaço público, frente à casa do visado, e o lirismo dos textos estava impregnado de relações de poder que demarcavam classes sociais, por meio de mensagens de aparente submissão, que impõem o “pão e o circo” (Veyne, 1976), como concessões políticas conquistadas pelas classes subordinadas. Como assinalou Paul Veyne o poder dominante não oferecia o “circo” ao povo para o despolitizar, o povo é que se politizava contra o poder dominante se este lhe negava o “circo” (Veyne, cit. em Scott, 2003: 263). Isto significa que a classe dominante ao permitir mais “válvulas de escape” que não alterassem a ordem estabelecida, diminuía potencialmente o descontentamento colectivo e a possibilidade de rebelião das classes subordinadas. Como salienta James C. Scott, independentemente das premissas implícitas, que estão por detrás de cada acto de comunicação, o comunicador quer dizer o que disse, e apesar do poder social no Carnaval ser menos assimétrico, o poder recíproco continua a ser poder (Scott, 2003: 248). Se aceitarmos o Carnaval como “a válvula de escape” que permitia libertar o “discurso oculto”, aliviando tensões sociais, não podemos deixar de considerar que os versos estavam condicionados por regras, não apenas de ordem convencional, mas também por um sistema repressivo que condicionava todos os âmbitos da vida social, impedindo qualquer forma de manifestação de descontentamento.

Estudantinas

Estudantina de Barrancos (Barrancos), 1961

O Carnaval, como tema milenário do “mundo às avessas”, que contraria uma visão do mundo “naturalizada”, propiciava práticas rituais que representam uma “segunda vida do povo”, que aspirava temporariamente ao reino da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância, por isso todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, da consciência alegre sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (Bakthin, 2002: 10). Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão e a negação de uma ordem social radicalmente diferente daquela que vivem (Scott, 2003: 126). Das Estudantinas de Barrancos restam apenas algumas fotografias e versos que ajudam a reconstruir a memória de uma prática ritual, que atualmente não mobiliza nem atrai novos colectivos.

estudantina

Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2017

Na Amareleja, freguesia do concelho de Moura, com cerca de 2.000 habitantes em 2013, as Estudantinas mantiveram alguma continuidade como prática carnavalesca, independentemente da intervenção da Junta de Freguesia em 1992, ao promover o primeiro concurso de Danças/Estudantinas. Tratou-se de um processo de construção de memória colectiva, para “manter a tradição”, que estabeleceu um roteiro pela vila, assinalando os locais de actuação, que atualmente se mantêm. A Junta de Freguesia da Amareleja também apoia os grupos com 150€, e oferecia um jantar no final do desfile. Mas a crise económica e os consequentes cortes nos apoios municipais à cultura não davam “nem para petiscar…” como assinalavam os versos de uma Estudantina de 2014.

2014

Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2014

A festa começa pela manhã, no lugar dos Barranquinhos, situado no extremo da vila, e termina no Regato, o coração da vila alentejana. Os grupos percorrem as ruas criando o seu roteiro de atuações, mas todos convergem no Lar de Idosos, frente à Casa do Povo e no Regato. Os vizinhos assomam-se às janelas e às portas, para partilharem do riso e da crítica social, e alguns contribuem com o que podem para a coleta dos grupos no final das atuações. Ao longo do percurso são recebidos em casas de amigos e familiares que lhe oferecem comida e bebida. “- É a folia que nos chama!”, dizem uns versos, reafirmando que “a Amareleja tem mais cor quando chega o Carnaval”.

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Estudantina de António Guerreiro, Amareleja (Moura), 2015

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Estudantina de Manuel Estevão, Amareleja (Moura), 2015

Nos últimos anos, a festa carnavalesca da Amareleja reúne grupos provenientes da Granja, Safara, Santo Amador e Santo Aleixo da Restauração, povoações vizinhas desertificadas que no passado reuniam localmente diversos grupos de Estudantinas. Atualmente apresentam a sua estudantina integrados no desfile organizado pela Junta de Freguesia, que se inicia junto à Igreja Matriz, e percorre a principal artéria da vila, com atuações frente à Junta de Freguesia, nas 4 esquinas e no Regato, lugar para onde converge o público (locais e forasteiros).

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Estudantina de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2017

Estes grupos afirmam-se como protagonistas intemporais de um passado que aspira ao futuro e à transformação da sociedade, por meio da linguagem do corpo, do discurso de resistência à versão oficial do mundo, do espírito ambivalente e regenerador, da alegria e da abundância de comida na celebração da vida colectiva. Os participantes, de ambos os sexos e de diferentes faixas etárias, estão vinculados entre si por laços de parentesco, de vizinhança e de amizade e partilham a mesma visão do mundo. Quase todos os participantes evocam algum familiar com o qual se estrearam nas Estudantinas, prática que preservam e reivindicam como herança cultural.Cada grupo cria um repertório caracterizado por temáticas que articulam as problemáticas reais da comunidade local, com as imagens globais da “sociedade do espectáculo”. Os temas de crítica social representam uma “visão do mundo” de falsas promessas eleitorais, de alterações de valores e perdas de direitos sociais. As canções denunciam o desemprego e as falsas expectativas criadas pelos cursos de formação, os subsídios da União Europeia para “os jovens agricultores”, que nada produzem, os conflitos políticos entre os representantes do poder local, as promessas não cumpridas em torno da construção de um Pavilhão, do abastecimento da água, ou do direito aos serviços de saúde.

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Estudantina de Hortense Lameira, Amareleja (Moura), 2017

No contexto sociopolítico contemporâneo os políticos e as figuras mediáticas são destituídas das suas funções e posições sociais, para surgirem em situações que desafiam o riso colectivo, ambivalente e universal, que nega e afirma o permitido, o proibido, a censura e o excesso. A “sociedade do espectáculo” é desconstruída localmente, a partir de casos mediatizados (“o Sócrates”, “o terrorismo” e a intolerância religiosa), ou de programas de televisão como “A casa dos segredos”.

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Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2017

As Estudantinas resistem à “sociedade do espectáculo” pelo espírito ambivalente e regenerador que preserva o sentido mítico e colectivo da celebração, na qual prevalecem as comunicações personalizadas. A cultura como parte decisiva da hegemonia política impõe a discussão em torno de práticas culturais contra-hegemónicas, como possibilidades alternativas ao futuro das sociedades. Esta “transgressão” temporária, que não altera a ordem social, aspira a instaurar a verdade no mundo ao denunciar as falácias do discurso hegemónico. Os participantes aspiram sobretudo à partilha colectiva da abundância e da alegria, na esperança de um futuro renovado.

(…)

Andam esses presidentes

Loucos com más intenções

Pra não espalhar a Peçonha

Fazem muros de vergonha

Pra meter medo às nações.

Não podemos entender

A razão de tanta guerra

Quando é que o homem faz

Um exército de paz

Para as crianças da terra.

(…)

(Versos da Estudantina de Hortense Lameira, 2017)

 

 

Referências bibliográficas

Bakthin, Mikhail. 2002 (1941). A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento São Paulo: Hucitec, Annablume Editora.

Bourdieu, Pierre. 1998. “The essence of neoliberalism”, Le Monde Diplomatique. Dezembro. https://mondediplo.com/1998/12/08bourdieu.

Comaroff, Jean e John Comaroff. 2001. “Millenial Capitalism: First Thoughts on a Second Coming”. In Millenial Capitalism and the Culture of Neoliberalism, editado por Jean Comaroff e John Comaroff, 2-56. Durham: Duke University Press.

Debord, Guy. 1995 (1967). La sociedad del espectáculo. Santiago de Chile: Ediciones Del Naufragio. http://criticasocial.cl/pdflibro/sociedadespec.pdf.

Harvey, David. 2007. Breve historia del Neoliberalismo. Madrid: Ediciones Akal.

– 1996. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola.

Ortner, Sherry. 2011. “On Neoliberalism”, Anthropology of this Century 1. http://aotcpress.com/articles/neoliberalism/.

Scott, James C. 2003 (1990). Los Dominados y el Arte de la Resistencia. México: EditorialTxalaparta.

 

(Comunicação apresentada na Jornada de Estudos Memória Património e Devir: entre futuros passados e tempos inéditos,  organizada pelo Instituto de História Contemporânea e Instituto de Etnomusicologia – Centro de Música e Dança (INET-md). Lisboa, FCSH-UNL, 20 de Abril de 2017. Programa disponível em: http://www.inetmd.pt/images/JornadaPatrinonioDevirPrograma.pdf)

 

 

O Cante na raia do Baixo Alentejo – passado, presente e horizontes de expectativa

No filme “Alentejo, Alentejo”, de Sérgio Tréfaut, o mestre Bento Maria Adega, cantador de Safara, diz-nos que “foram cigarras e pássaros que ensinaram os alentejanos a cantar”. No entanto, os estudiosos atribuem diversas origens ao Cante Alentejano, que entrelaçam influências culturais cristãs, judaicas e árabes. Sobre as terras alentejanas escreveu Luís de Freitas Branco: “a região alentejana, de tão gloriosas tradições musicais, parece justificar, na tendência polifónica do seu povo, a teoria geralmente aceite de que a extraordinária florescência do estilo a cappella, em volta de Évora, não fosse obra do acaso” (Freitas Branco, 1929: 24). Armando Leça ao referir-se à imensa planície que é o Baixo Alentejo e aos seus magníficos corais escreveu: “a paisagem do Baixo Alentejo sem corais é como catedral gigantesca sem as sonoridades do órgão” (Leça, s/d: 32). Rodney Gallop (1960) também manifestava um entusiástico fascínio pelo Cante, afirmando: “na pequena região de entre Beja e a raia, que compreende Serpa, Moura e alguns sítios mais humildes, conservou-se uma tradição de cantar a três partes, que não tem paralelo na minha experiência de qualquer país” (Gallop, 1960: 30). No entanto, as primeiras referências documentais ao Cante remetem para o final do século XIX, início do século XX, e a denominação mais antiga e usual era de “Canto às Vozes”. João Ranita Nazaré diz-nos que a primeira alusão aos cantares no Baixo Alentejo data de 1886, da autoria de Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho (1837-1903), num livro de contos em que descreve alguns costumes populares e onde o Cante surge ligado à dança: “ficavam horas no baile, andando à roda n’um passo vagaroso, cantando em coro as modas lentas, entoadas em terceiras, prolongadas em sonoridades singulares e doces” (Marchi, 2010: 8). Na revista A Tradição (1899-1904) encontramos um conjunto de textos de Manuel Dias Nunes e um cancioneiro com 60 cantigas (com pauta), que manifestam o interesse das elites intelectuais pelo Cante e outras práticas musicais associadas à cultura popular. A César das Neves e Gualdino de Campos devem-se os três volumes do Cancioneiro de Musicas Populares (1893-1899) contendo letra e música de canções, e a António Tomás Pires os quatro volumes que compõem os Cantos Populares Portugueses (1902-1910) recolhidos da tradição oral, contendo canções provenientes das diversas províncias portuguesas, com predomínio do Alentejo. Na Amareleja, terra do Padre António Marvão, musicólogo e folclorista autor do Cancioneiro Alentejano (1946), encontramos na Sociedade Recreativa Amarelejense uma foto de um grupo de cantadores, datada de 1887, que serve para legitimar a tradição do Cante junto dos seus associados e inspirar o actual grupo coral, formado em 2007.

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Em 1902, Manuel Dias Nunes fala-nos dos cantadores: “essa pobre e sofredora gente, que leva a vida inteira a moirejar, disseminada por montes e vales, à chuva, ao sol, ao frio, encontra no canto coral como que um doce lenitivo à rudeza do labor que a subjuga desde o berço até à sepultura.” (“Costumes da minha terra ― os descantes”, in A Tradição, Ano IV, p. 8). José Alberto Sardinha (2001) descreve-nos a prática do cante e da dança nas aldeias alentejanas nos seguintes termos:

“As moças cantavam muito bem, frequentemente sozinhas, fazendo a polifonia tradicional do canto alentejano. Ali, a tradição não tinha senão uma regra fixa: no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto. Não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar e os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar” (Sardinha, 2001: 29).

Na década de 1930, com o início do processo de folclorização, cujo objectivo era representar a tradição duma localidade, duma região ou da Nação, assistimos à mobilização de mediadores, pessoas letradas que exerciam influência pessoal ao nível local, regional e nacional, e intervinham na selecção e adaptação de repertórios, na organização de grupos folclóricos e de eventos (Castelo-Branco & Branco, 2003). No processo de adequação do Cante ao contexto político e cultural do Estado Novo, as casas do povo foram o espaço social privilegiado para a criação e emblematização dos grupos corais, como representações locais da Nação. A partir de 1933 o Estado Novo controla todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. Os estatutos da FNAT (1935) determinavam uma educação estética de exaltação do rural, assente nos pilares do folclore e da etnografia, impondo um “modelo nacionalista-ruralista-tradicionalista da cultura popular”, com o objectivo de legitimar o regime e estabelecer um consenso social em torno de um conjunto de valores, imagens e práticas culturais (Torgal, 1982). As elites locais alentejanas participaram deste processo, e contribuíram para a “domesticação” e divulgação dos grupos corais, organizando espectáculos na capital. No primeiro espectáculo organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), a 23 de Março de 1937, no Teatro São Luís em Lisboa, participaram os grupos corais de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). Francisco Valente Machado (1980) afirma ter sido “a primeira vez que cantadores alentejanos se exibiram na capital do País”, e descreve como se “deslocaram em passos lentos e cadenciados pelo Chiado abaixo até ao Rossio, entoando maravilhosos cantos da sua província, como se se encontrassem nas terras das suas naturalidades”. Para assinalar a participação no evento, o cantador António Soares, do grupo coral de Vila Verde Ficalho, versejou: “Esta noite sonhei eu /Um sonho muito feliz/ Sonhei que estava cantando / No Teatro São Luís” (Machado, 1980: 279).

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Entre 1939 e 1940, o musicólogo Armando Leça realizou o primeiro levantamento “músico-popular feito em Portugal através do registo mecânico de som”, de cantares e danças populares. Tratava-se de uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade e o terceiro da Restauração. O objectivo era organizar uma compilação “das mais características e genuínas músicas e canções populares existentes em todas as províncias do continente português” (Sardinha, 1992). Armando Leça esteve no Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve. No Baixo Alentejo foram gravados grupos de Moura, Serpa, Aldeia Nova de São Bento, Baleizão, Aljustrel, Castro Verde Mértola e Vila Verde de Ficalho. O registo de som em fita magnética esteve a cargo da Emissora Nacional, mas a publicação desta recolha pioneira, prevista pela Comissão dos Centenários, não chegou a realizar-se (Sardinha, 1992). No entanto, a 30 de Novembro de 1940 Armando Leça proferiu uma conferência sobre o seu trabalho, intitulada: “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, na Casa do Alentejo, durante a qual se exibiu o grupo de cantadores de Vila Verde de Ficalho.

armando leça

O Cante estava profundamente ligado à vida dos trabalhadores rurais, ao trabalho agrícola, ao convívio nas tabernas, e às festas, animando os bailes ao som da viola campaniça, da harmónica ou do adufe, que serviam para imprimir ritmo (Marvão, 1955; Machado, 1980). Joaquim Soares, presidente da direcção da “Associação Moda”, recorda que o Cante era entoado por homens e mulheres, que cantavam no campo, a caminho de casa, nas festas, e que hoje o Cante é associado sobretudo aos homens, porque “era nas tabernas, em torno do vinho e do tremoço, que se organizavam os grupos, e aqui não entravam as mulheres. Falamos dos anos 40, 50 do século XX. (…) Hoje há menos convívio. Hoje os grupos marcam ensaios. Antes cantavam a trabalhar e no lazer e assim se organizavam” (ver artigo “Associação Moda – O cante alentejano é «melodia que transmite o sentimento de um povo»” em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=4611). No mesmo sentido falaram os cantadores e cantadeiras com quem conversei em Santo Aleixo da Restauração, em Barrancos, na Amareleja e em Vila Verde de Ficalho, quando evocam o Cante como expressão de sentimentos e experiências de vida.

O Cante Alentejano é caracterizado como uma polifonia simples, a duas vozes paralelas, à terceira superior, formado por um coro, sem instrumentos, de homens, de mulheres ou misto, que cantam estruturas poéticas denominadas por “modas”. Segundo Manuel Joaquim Delgado (1955) esta denominação provém do facto destas canções se divulgarem de boca em boca, entre a população rural alentejana, caindo assim na “moda” (1955: 7). As “modas” cantam a terra, o trabalho, os acontecimentos e os sentimentos de homens e mulheres, no sentido do amor, da saudade, da zombaria e da crítica social. As modas são formadas por estrofes poéticas e interpretadas segundo um cânone estabelecido: um solista, denominado como ponto, inicia o canto, cantando uma quadra solta, de seguida um outro, designado por alto, substitui-o, cantando o primeiro verso da moda, e de seguida todo o coro se lhes junta para cantar o restante. O padre António Marvão (1955) diz-nos que podemos dividir o cante alentejano em três tipos de música: as modas lentas, as modas coreográficas e os cantes religiosos, como os “Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo” publicados nesta página (https://culturaexpressiva.wordpress.com/2015/01/24/cantos-populares-de-natividade-das-janeiras-e-dos-reis-na-raia-do-baixo-alentejo/)
Nos finais da década de 1950, as transformações na agricultura e os subsequentes fluxos migratórios dos trabalhadores rurais para as cidades, na procura de melhores condições de vida, altera a geografia emocional do Cante, como espaço de interação social entre as pessoas e os lugares. No contexto da Diáspora formam-se os primeiros grupos corais nos arredores de Lisboa, enquanto os grupos locais perdem gradualmente os seus cantadores. No pós 25 de Abril os grupos corais alentejanos são resignificados e participam em comícios, manifestações e reivindicações dos trabalhadores rurais, assumindo um papel de intervenção política. Assiste-se à formação de novos grupos nos quais as mulheres passam a assumir um papel relevante, e à criação de “modas” que denunciam a exploração, a fome, a repressão nos campos e as legitimas aspirações da Reforma Agrária. A partir da década de 1980, com o fim do processo revolucionário, abandona-se as temáticas de intervenção politica e social, recuperam-se os repertórios tradicionais e vive-se um período de indefinição do Cante, que conduz ao desaparecimento e envelhecimento dos grupos. Na década de 1990 assiste-se a uma renovação do Cante, com o surgimento de novos grupos na Diáspora e de grupos femininos locais, que teimam em manter e defender a sua identidade cultural.

No ano 2000 foi criada a MODA – Associação do Cante Alentejano, para “divulgar, defender e dignificar o canto alentejano”, congregando uma parte significativa dos grupos corais em actividade no Alentejo e nas regiões de Lisboa e Setúbal. Numa entrevista à agência Lusa, Joaquim Soares afirmava que “o envelhecimento dos grupos corais era um dos grandes problemas do Cante”, precisando que a maioria dos grupos associados da Moda “eram constituídos sobretudo por homens entre os 50 e os 70 anos”. Joaquim Soares defendia o ensino das modas nas escolas e nos conservatórios da região, para que as novas gerações aprendessem “o cantar típico da sua terra como aprendem outras músicas” (ver artigo em: http://expresso.sapo.pt/cante-alentejano-sobrevivencia-depende-da-convivencia-dos-dos-mais-velhos-com-geracao-mp3=f533813#ixzz2aYbKDQjM).
Em 2012, José Francisco Colaço Guerreiro, num artigo publicado no Correio do Alentejo afirmava que “o cante hoje deve ser tido como um produto cultural, um património de inestimável valor, pertença colectiva de um povo e de uma região e não mais uma manifestação etnográfica específica do proletariado rural” (ver artigo em: http://www.correioalentejo.com/?opiniao=1157&page_id=56). Para o músico Janita Salomé “é no território de laboratório, experimentando coisas novas, nomeadamente instrumentos, que o cante deve evoluir, sem perder a sua matriz”, para isso, considera que “é essencial captar gente nova para o cante” (ver artigo em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=5255&dossier=http%3A%2F%2Fwww.cafeportugal.pt%2Fpages%2Fdossier_artigo.aspx%3Fid%3D6038&did=6038). Neste sentido, foram implementados dois projectos de ensino do Cante Alentejano, um em Serpa e outro na Damaia, para além de novos projectos que têm surgido em Barrancos e na Amareleja, motivados pela candidatura e reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade. Por outro lado, assiste-se ao surgimento de novos grupos corais, constituídos por jovens com formação musical, oriundos de contextos urbanos, que parecem dar resposta às problemáticas em torno da continuidade do Cante. O processo de candidatura, ao mobilizar autarquias, associações, agentes culturais e grupos corais também criou novas expectativas nos cantadores. Todavia, continuam a debater-se com os problemas de sempre, a falta de recursos financeiros e de reconhecimento como grupos musicais, no contexto da indústria discográfica e do espectáculo.

 

Bibliografia:
DELGADO, Manuel Joaquim (1955) Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo, vol. II, Lisboa.
FREITAS BRANCO, Luís de (1929) A Música em Portugal, [brochura da] «Exposição Portuguesa em Sevilha», Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa.
GALLOP, Rodney (1960) Cantares do Povo Português: estudo critico, recolha e comentário, Lisboa, Instituto de Alta Cultura.
GIACOMETTI, Michel (1981) Cancioneiro popular português, (com a colaboração de Fernando Lopes Graça), Lisboa, Círculo de Leitores.
LEÇA, Armando (s/d) Música Popular Portuguesa, Lisboa.
LOPES-GRAÇA, Fernando (1991) A Canção Popular Portuguesa, Lisboa, Caminho.
MACHADO, Francisco Valente (1980) Monografia de Vila Verde de Ficalho. Vila Verde de Ficalho: Biblioteca-Museu.
MARCHI, Lia, Piedade, Celina da, e Manuel Morais (2010) Caderno de Danças do Alentejo, vol.1, Pédexumbo.
MARVÃO, António (1955) O Cancioneiro Alentejano: Corais majestosos, coreográficos e religiosos do Baixo Alentejo, Braga: Editorial Franciscana.
NAZARÉ, João Ranita (1979) Música tradicional portuguesa: cantares do Baixo Alentejo, Lisboa: Instituto da Cultura Portuguesa.
NEVES, César & CAMPOS, Gualdino de (1893-1899) Cancioneiro de Musicas Populares, contendo letra e música de canções, serenatas, chulas, danças, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hinos nacionais, cantos patrióticos, cânticos religiosos de origem popular, cânticos litúrgicos popularizados, canções políticas, cantilenas, cantos marítimos, etc., e cançonetas estrangeiras vulgarizadas em Portugal, Vol.1, 2 e 3, Porto, Tipografia Ocidental. Consultável em: http://purl.pt/742
SARDINHA, José Alberto (1992) “Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular realizado em Portugal”, em: http://run.unl.pt/handle/10362/6737
– (2001) A Viola Campaniça: O Outro Alentejo, Sons da Tradição, vol.1, Tradisom.
TORGAL, Luís Reis & Carvalho Homem, Amadeu de (1982) “Ideologia salazarista e «cultura popular» – análise da biblioteca de uma casa do povo”, Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), 3.°4.°5.°, 1437-1464.

Revista A Tradição (criada em 1899 por Ladislau Piçarra e Manuel Dias Nunes). Vol.1 consultável em: http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up

Estudantinas – danças carnavalescas na raia do Baixo Alentejo

O Carnaval, tema milenário do “mundo às avessas”, propicia práticas rituais de inversão que assinalam um tempo de utopia. Por isso, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados de lirismo e da consciência sobre a relatividade da verdade e do poder. Este tipo de pensamento, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, pela crítica e negação da ordem social existente. Até ao 25 de Abril os versos das Estudantinas passavam pelo crivo da censura do Presidente da Câmara (Barrancos) ou do Regedor (Amareleja) e eram cantados pelas ruas das vilas no domingo e na terça-feira gorda. Os versos das Estudantinas, acompanhados de música e teatralizações, falavam do que de bom e de mau foi feito ao longo do ano, e visavam direta ou indiretamente os vizinhos e os representantes do poder. Os autores mais recordados em Barrancos são o “Cumbreño” e o “Lelo”, e na Amareleja o Luís Perico, que “dava uma na caixa, e outra de racha”, como recordam os mais idosos.

Amareleja - Estudantina de 1960

Amareleja – Estudantina de 1960

Como prática carnavalesca as Estudantinas perderam alguma dinâmica em anos fortemente marcados pelos fluxos migratórios. Em Barrancos restam algumas fotografias e versos que ajudam a reconstruir a memória de um tempo de folia, que actualmente não atrai o interesse dos jovens .

Barrancos - Estudantina de 1961

Barrancos – Estudantina de 1961

“Trabalho não nos arranjam /Isto assim não pode ser /Nós temos que trabalhar/Para se queremos comer./ Rapazes tenham paciência / Temos de seguir andando /De noite por essas fragas /Na vida do contrabando” (Barrancos -excerto da Estudantina de 1973).

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Na Amareleja, as Estudantinas mantiveram-se como prática cultural carnavalesca. Em 1992 a Junta de Freguesia promoveu o primeiro concurso de Danças/Estudantinas para “manter a tradição”, que contou com a participação de cinco grupos. No ano seguinte estabeleceu um roteiro pela vila, assinalando os locais de actuação, que actualmente se mantêm. Os grupos são constituídos por familiares e amigos que partilham a mesma visão do mundo, e pretendem manter uma prática cultural herdada dos pais e avós. Quase todos os intervenientes evocam algum familiar com o qual se estrearam nas Estudantinas, e começaram tão jovens como aqueles que integram os grupos da Hortense, do Carlos Prazeres e do Manuel Valente. As competências musicais e vocais dos participantes, aliada à criatividade dos versos, fazem do processo de criação um tempo de convívio e cumplicidade entre os elementos dos grupos. Tudo começa pela escolha do tema musical, ao qual se ajustam os versos, em função das temáticas sociais escolhidas. A rima é particularmente apreciada pelos mais idosos, que ainda não reconhecem nos jovens as qualidades atribuídas ao saudoso Luís Perico. Os temas de crítica social enlaçam as problemáticas locais com a crise global, refletindo uma “visão do mundo” de falsas promessas eleitorais, de alterações de valores e perdas de direitos sociais. A Junta de Freguesia da Amareleja apoia os grupos com 150€, e oferecia um jantar. Mas, em 2014, “nem petiscar…” como diziam os versos da Estudantina do grupo de Carlos Prazeres.
Nos últimos anos, as Estudantinas da Amareleja suscitaram o interesse dos vizinhos da Granja, de Santo Amador, de Moura e de Santo Aleixo da Restauração que desfilam na terça-feira gorda pelas ruas da vila da Amareleja. Todavia, os grupos amarelejenses não se revêm nas performances dos vizinhos, que caracterizam de “folcloristas”, defendendo as suas danças como representativas da tradição local. A concertina, as pandeiretas, as castanholas e as zambombas são os instrumentos estruturantes, aos quais se juntam violas, caixas, bombos ou trompetes, conforme a criatividade de cada agrupamento. Na manhã de terça-feira os grupos da Amareleja percorrem as ruas da vila criando o seu roteiro de actuações, e coincidem no Lar de Idosos, frente à Casa do Povo e SFUMA e no Regato. Na parte da tarde a concentração e actuação de todos os grupos inicia-se junto à Igreja Matriz, seguindo-se o desfile e actuações frente à Junta de Freguesia, nas 4 esquinas e por fim no Regato, para onde converge o público (locais e forasteiros). Em 2014 as Estudantinas denunciavam o desemprego, a emigração dos jovens, o grupo de Carlos Prazeres cantava:

“Estamos de novo, cantando para o povo, este Carnaval / Já não é feriado, está tudo acabado, neste Portugal /As festas acabam, e ainda por cima, muitos emigraram, porque em Portugal, já não há esperança /Se tudo abalar, temos que ir cantar, a dança na França.

Em 2015 a festa começou pela manhã, no lugar dos Barranquinhos, situado no extremo da vila na estrada para Barrancos, e terminou no Regato, o coração da vila alentejana. Os grupos de Estudantinas percorreram as ruas e os vizinhos assomaram-se às janelas e às portas, para partilharem do riso e da crítica social, e alguns contribuem com o que podem para a colecta dos grupos. Ao longo do percurso pelas ruas os grupos são recebidos em casas de amigos e familiares que lhe oferecem comida e bebida. “É a folia que nos chama” dizem uns versos, reafirmando que “a Amareleja tem mais cor quando chega o Carnaval”. Em 2015 saíram cinco grupos da Amareleja: da Hortense Lameiras, do Manuel Estevão, do António Guerra, do Carlos Prazeres e do Mário Valente. A festa atraiu grupos das povoações vizinhas de Santo Amador, Moura, Safara e Granja. A Granja fez-se representar por um grupo feminino e outro masculino, membros dos grupos corais da Casa do Povo. De Safara veio a banda juvenil, e dos Leões de Moura veio um grupo misto de cantadores. Os versos das Estudantinas falaram do desemprego, dos cursos de formação, dos subsídios da União Europeia para “os jovens agricultores”, denunciando as falácias do discurso do poder. O reconhecimento do cante a Património Imaterial da Humanidade foi homenageado por todos os grupos, “depois de 50 anos a cantar”, dizia um cantador. Os versos denunciaram os casos mais mediatizados, como “o caso Sócrates”, “o terrorismo” e a intolerância religiosa, os programas de televisão, como “A casa dos segredos”, assim como os acontecimentos locais que geram polémicas como “o Dia da Mulher” e os conflitos do poder local em torno de um Pavilhão. Como cantava o grupo de António Guerra:

“Muita coisa aconteceu / neste ano que findou, /continuou-se a viver mal, / até aqui nada mudou”.

Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo

No reinado de D. João V, mais precisamente em 1716, o costume popular de cantar vilancicos por altura das festas do Natal, dos Reis e da Imaculada Conceição de Maria foi interrompido definitivamente, por motivo da adoção do cerimonial litúrgico romano, objetivo muito ambicionado pelo Rei Magnânimo (Lopes, 2014: 84). (…) Na Capela Real, os primeiros vilancicos a incorporar secções de tipo italiano localizam-se no folheto para a Festa da Imaculada Conceição de 1709, mas é de salientar que estas secções começam a escutar-se em Lisboa quatro anos antes, associadas à Festa de Santa Cecília, comemorada na Igreja Paroquial de Santa Justa (p. 86).

Michel de Certau (1989) diz-nos que no séc. XVIII se apoderou da aristocracia esclarecida “uma espécie de entusiasmo pelo popular”, uma «rusticofilia», como reverso de um medo radicado na cidade “perigosa e geradora de corrupção”, que justifica o regresso a uma “pureza original dos campos, símbolo das virtudes conservadas desde os tempos mais remotos”. No entanto, o camponês já está civilizado pelos costumes e a moral cristã, que produziram “súbditos fiéis, dóceis e laboriosos” (1989: 52). O regresso a um povo ao qual se cortou a palavra para melhor o domesticar, sustenta a idealização do popular sob a forma de um monólogo. A linguagem da religião poderia ser o último recurso de uma cultura que já não se podia exprimir, e que tinha de se calar, ou mascarar, para fazer ouvir uma ordem cultural diferente. Aliás, já que o povo não falava, podia pelo menos cantar, e “o prazer experimentado pela auréola «popular», que cobre melodias inocentes, está precisamente na base de uma concepção elitista da cultura” (1989: 53).
Em Barrancos (Baixo Alentejo), na véspera de Natal, ainda se cantam villancicos de Navidad, do cancioneiro tradicional da Extremadura, acompanhados pela zambomba. Na Extremadura os villancicos são acompanhados por instrumentos de corda, como a bandurra, a guitarra e pelo acordéon. Todavia, na Andalucía, os villancicos e cânticos populares de Navidad são acompanhadas pela zambomba, instrumento de percussão, que em Portugal também é designado por sarronca. Neste vídeo, Manuel Torrado e Maria dos Remédios Guerreiro recordam alguns versos de vilancicos que cantavam frente à igreja, ao calor do lume que arde na Praça.

Zambobita, zambombita
Yo te tengo que romper
A la puerta de mi novia
No quisiste tocar bien.
(…)
Villancicos De Navidad – La Virgen va Caminando
La Virgen va caminando
por una montaña oscura
y al vuelo de una perdiz
se la ha espantado la mula.
(…)

Villancicos De Navidad – Los Peces En El Río
(…)
Pero mira como beben
los peces en el río,
pero mira como beben
por ver al Dios nacido.
Beben y beben y vuelven a beber,
los peces en el río
por ver a Dios nacer.

Em Vila Verde de Ficalho, Michel Giacometti gravou um grupo de homens, na sua maioria trabalhadores rurais, dirigido por Mestre Bento, barbeiro de profissão, cantando a “Moda ao Menino”, do reportório tradicional de Ficalho, um dos mais valiosos temas da música coral alentejana. Michel Giacometti considerava que o Baixo Alentejo era, talvez, das regiões mais pródigas do país em cantares alusivos ao nascimento do Menino, e assinalava: “o homem sul alentejano, por razões a que a sua condição social e económica talvez não seja estranha, canta modas cuja linha severa não impede uma certa ternura ao Menino nascido em «tão pobres agasalhos, que até parece impossível» como dirá um dos nossos amigos de Ficalho”. (“O Povo que canta”, 11.º Programa, emitido a 27 de Dezembro de 1971)

Os trabalhadores rurais sempre entoaram cantos religiosos na quadra pós-natalícia, (Janeiras, Reis), como forma de pedir esmola à porta dos ricos. O canto “Oração das Almas”, interpretado por um grupo de cantadores do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração, integra-se no repertório dos cantos de Janeiras e Reis registados por Michel Giacometti em 1971. O canto de Janeiras, ou canto de peditório, prática musical encontrada em numerosas povoações rurais de norte a sul do país, era geralmente cantado às portas das pessoas mais abastadas, na noite de 31 de Dezembro. Como recordava o Padre António Marvão (1956), “quem não se lembra ainda, quando criança, ou mesmo depois de grande, de lhe chegarem à porta, de noite, na paz abençoada da lareira grupos de cantadores, às vezes mistos, a cantar os Reis ou as Janeiras!? Que unção espiritual despertavam em nossa alma esses cantos religiosos, elevando o nosso pensamento para o Alto, para o Céu, onde mora a Felicidade e a Paz! No silêncio impressionante da noite fria, o nosso coração enchia-se de compaixão pelos pobrezinhos, que, nas pessoas dos cantadores, eram contemplados com figos, passas, carne de porco, pão e até dinheiro.” (Marvão 1956: 13)

José Patrício, cantador do Grupo Coral Masculino da Casa do Povo da Amareleja (Baixo Alentejo) recorda-nos como cantava os Reis na Amareleja: “Comecei a cantar os Reis tinha aí os meus oito ou dez anos. Andava com um grupo de miúdos da mesma idade, e a gente ia de porta em porta a cantar os Reis para nos darem alguma coisa. Davam-nos umas castanhas, uns marmelos, ou uns dinheiritos que depois a gente repartia por todos. Íamos à casa dos ricos, que esses versos eram dedicados aos ricos, à casa do Dr. Zé, do senhor Eugénio Barreto, do senhor Tonico Luís, do senhor Adolfo, e também íamos àquelas casas mais pobres, davam-nos uns figuinhos e outras coisas assim. Era muito divertido. Hoje já não há esse divertimento como havia antigamente, agora os rapazes já não sabem cantar os Reis” (José Patrício, 71 anos, agricultor).

Na Amareleja, os cantadores do Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense, formado em 2007, por 28 elementos com idades compreendidas entre os 32 e os 80 anos, dirigidos pelo mestre António Castelhano Miguel, ensaiam a “Oração das Almas”, canto que na noite de 5 para 6 de Janeiro de 2015 entoaram pelas ruas da vila.

À porta de uma Alma Santa
Bate um Deus, a toda a hora
Alma Santa, respondeu
Ó meu Deus, que quereis agora?
Quero-te a ti, Alma Santa
Lá para, o Reino da Glória.

Fontes bibliográficas:
“Vilancicos que se cantaram na Paroquial de Santa Justa nas matinas e festa da Santa Cecília, 1705”, em: http://purl.pt/…/424812_PD…/424812_0000_1-24_t24-C-R0150.pdf

Certeau, Michel de & Julia, Dominique (1989) “A beleza do morto: o conceito de «cultura popular». In A Invenção da Sociedade, Lisboa: Difel pp.49-59.

Lopes, Rui Cabral (2014) “O Villancico no reinado de D. João V: Entre a persistência do costume e a mudança de paradigmas litúrgico-musicais”. Artigo completo disponível em: http://rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/view/27/27

Marvão, António, 1956, O Alentejo Canta. Conferência proferida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Beja, no dia 17 de Junho de 1956, Braga, Editorial Franciscana.

Revel, Jacques (1989) A Invenção da Sociedade, Lisboa: Difel.

Internet:
Jacinto Saramago reuniu algumas cantigas de Navidad para zambomba que podem ser consultadas aqui: http://estadodebarrancos.blogspot.pt/…/cantigas-do-natal-ba…

“Para buscar al duende no hay mapa” – imaginários do flamenco na raia do Baixo Alentejo

A partir da década de 90 assistimos a contínuas inflexões na difusão, reconhecimento e internacionalização do flamenco, com sucessivas modas, estilismos e tendências, que se incluem nas designadas “músicas étnicas”, ou na World Music (Cruces Roldán 2012, 262). Por outro lado, o estudo do flamenco consolidou-se na academia, adquire representatividade nas indústrias discográficas e cinematográficas, nas artes do espectáculo, em festivais, na moda e em publicações. Nas últimas décadas, os recursos públicos converteram-se em canais de divulgação comercial e institucional, com subvenções à investigação, à patrimonialização e ao ensino oficial. Em 2010 o flamenco foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade, com o apoio de 30.000 pessoas e de 60 países, depois de uma candidatura falhada em 2005. Neste contexto, as escolas de flamenco, de iniciativa oficial ou particular, emergem, como afirmação de uma cultura identitária andaluza, autenticada como Património Imaterial da Humanidade em 2010. O flamenco está presente, mesclado com outros tipos de formas mais folclóricas, como as sevillhanas, em múltiplas festas populares da Andaluzia, em festividades religiosas, feiras de gado e romarias, lugares de encontro de música e baile, como referente identitário da Andaluzia (Agudo & Isidoro 2012).
As populações raianas do Baixo Alentejo partilharam, ao longo do tempo, as sonoridades e a estética performativa do canto e do baile, nas romarias das povoações vizinhas, ou em espaços de sociabilidade e encontros familiares. Na actualidade, o flamenco atrai as gerações mais jovens, que pouco se identificam com o cante alentejano, originando uma diversidade de grupos e de experiências musicais, como o grupo de flamenco “Los Cuatro Vientos”, formado em Moura em Janeiro de 2012, por um grupo de amigos.

No entanto, são os grupos de baile que têm mais expressão e visibilidade, pela rede de ensino e partilha de imaginários musicais que cruzam a fronteira do Baixo Alentejo. Em Barrancos, a prática do flamenco inicia-se em 2001, quando a vereadora da Câmara Municipal de Barrancos contrata a professora e bailarina Ana Castilla para ensinar um grupo de jovens interessadas em aperfeiçoar as técnicas do baile. Ana Castilla nasceu em Cortegana (Huelva) em 1972, formou-se como professora em Sevilla, Huelva y Cadiz e regressou a Cortegana para ensinar a arte. No flamenco encontrou um sentido para a vida, e ao longo dos anos formou grupos de baile em povoações da Sierra de Aracena e Picos de Aroche. Na sequência do trabalho desenvolvido em Barrancos nasce o grupo “Alma Raiana”, apadrinhado pela vereadora da cultura, e é criada a Escola Municipal de Baile. O grupo “Alma Raiana”, com as actuações em festas locais e regionais, despertou o interesse de associações e grupos informais nas localidades raianas de Mourão, Santo Aleixo da Restauração, Serpa, Amareleja e Póvoa de São Miguel.

Para além da rede de ensino Ana Castilla promove iniciativas de fruição local, envolvendo alunos, familiares e membros das comunidades na organização de eventos, como a “Noche Flamenca”. A primeira “Noche Flamenca” realizou-se em Setembro de 2001, em Barrancos, por iniciativa de Ana Castilla e do grupo de baile “Alma Raiana”, com o apoio da Câmara Municipal de Barrancos. O evento assinalava o início da Escola Municipal de Baile, que tem actualmente três grupos: “Zapatito de Tacón”, “Rumbo Flamenco” e as “Flamenguitas”.

Rumbo Flamenco

Zapatito de Tacón

Flamenguitas com Ana Castilla

A 2 de Fevereiro de 2013 foi criado o grupo de baile “Pasión Flamenca” na Amareleja, afirmando a paixão dos seus elementos pela arte do flamenco. O grupo é constituído por treze jovens (doze do género feminino e um do género masculino), naturais da Amareleja, com idades compreendidas entre os 10 e os 25 anos de idade, na maioria estudantes. Alguns dos elementos participaram, em crianças, no primeiro grupo de baile que Ana Castilla dirigiu na Amareleja, em 2003, dependente do financiamento da Junta de Freguesia. A reabilitação da actividade deve-se à acção de um grupo informal, “patrocinado” por familiares e amigos, com o apoio logístico da Associação Cultural e Artística – 4 Esquinas e da Junta de Freguesia de Amareleja. A continuidade do grupo está alicerçada nas relações de amizade que nutrem pela professora. Em Agosto de 2013 assisti à primeira “Noche Flamenca”, organizada pelo grupo da Amareleja, na qual participaram os grupos de baile de Barrancos, de Póvoa de São Miguel (Moura), da Musibéria (Serpa) e de Los Romeros (Huelva).

Ana Castilla com o grupo de baile Pasión Flamenca

Ana Castilla com o grupo de baile Pasión Flamenca

Em Fevereiro de 2013, na Póvoa de São Miguel (Moura) nasceu o grupo de baile “A Mi Manera”, por iniciativa de Isa Caeiro e Sara Rodrigues que encontraram o apoio de amigas e familiares. Ana Castilla foi a professora escolhida para diretora artística, pela experiência, dinâmica e trabalho desenvolvido com os grupos de baile vizinhos. O investimento em guarda-roupa e ensino é suportado pelos elementos do grupo, com o apoio da Junta de Freguesia para o transporte da professora. O grupo é composto por vinte e oito jovens (vinte e sete do género feminino e um do género masculino), com idades compreendidas entre os 6 e os 34 anos de idade. Na sua maioria são estudantes, e naturais de Póvoa de São Miguel. Em 2013 o grupo estreou-se na “Noche Flamenca” de Barrancos, participou na “Noche Flamenca” da Amareleja, e organizou a primeira “Noche Flamenca” em Póvoa de S. Miguel, a 6 de Setembro do mesmo ano.

A 2 de Agosto de 2014 acompanhei a realização da 14ª edição da “Noche Flamenca” em Barrancos, que teve a participação de grupos de baile de diversas gerações de bailarinas, com diferentes níveis de aprendizagem e diversos estilos performativos. Perante uma assistência de cerca de 900 pessoas actuaram mais de 100 bailarinas(os) dos grupos: “Flamenguitas” (Barrancos), Escuela de Baile de Encinasola (Encinasola), Arte & Compás (Santo Aleixo da Restauração), Al Compás del Camino (Granja), Rumbo Flamenco (Barrancos), A Mi Manera (Póvoa de São Miguel), Rosales (Rosal de la Frontera), Buleria (Valencia del Mombuey – Extremadura), Pasión Flamenca (Amareleja), Zapatito de Tacón (Barrancos), para além do grupo de flamenco Val de Reales (Barrancos). No final do espectáculo, a vereadora da Câmara Municipal de Barrancos, madrinha do grupo “Rumbo Flamenco”, reiterou o apoio a uma prática cultural que representa um referente identitário dos barranquenhos.

Isabel Sabino, vereadora da cultura, com Ana Castilla e o grupo de baile Rumbo Flamenco

Isabel Sabino, vereadora da cultura, com Ana Castilla e o grupo de baile Rumbo Flamenco

A 27 de Agosto de 2014 assisti à 1ª Noite Flamenca de Santo Aleixo da Restauração (Moura – Baixo Alentejo), organizada pelo grupo de baile local, Arte y Compás, com a colaboração da professora Ana Castilla, no âmbito da rede de ensino e dinamização do flamenco. O grupo Arte y Compás foi formado em Fevereiro de 2014 por nove elementos do género feminino, com idades compreendidas entre os 17 e os 32 anos. Mas, a primeira experiência de ensino de baile em Santo Aleixo remonta a 2003, quando a presidente da Junta de Freguesia convidou Ana Castilla a iniciar um projecto idêntico ao que desenvolvia em Barrancos. As aulas começaram com um grupo de diferentes faixas etárias, que não teve continuidade. No entanto, o interesse das mais jovens permaneceu latente, e veio a concretizar-se com a criação do grupo de baile Arte y Compás, coordenado por Helena Chamorro. Na abertura do espectáculo, Helena agradeceu ao grupo musical “Os Restauradores” a cedência do espaço da associação para as aulas de dança, assim como o apoio da União das Freguesia de Safara e Stª Aleixo da Restauração, da Câmara Municipal de Moura e da Comissão de Festas de Santo António 2014-2015. Participaram no espectáculo os grupos de baile “Rumbo Flamenco” (Barrancos), “Sueño Romereño “ (Los Romeros-Huelva), “A Mi Manera” (Póvoa de São Miguel -Moura), “Pasión Flamenca” (Amareleja – Moura) e “Arte y Compás” (Santo Aleixo) dirigidos por Ana Castilla, e ainda os grupos: “Rosales” (Rosal de la Frontera-Huelva) e Escola de Baile de Safara (Safara-Moura) dirigidos por antigas alunas de Ana Castilla. O evento reuniu cerca de 500 pessoas, entre familiares, amigos e vizinhos, e encerrou com a actuação do grupo de flamenco “Rocío Lojita”, de Rosal de la Frontera.

1º Noche Flamenca Stº Aleixo

Ana Castilla transformou-se numa “regionauta” (Löfgren 2008), que cruza a fronteira luso-espanhola a partir de Cortegana, para dinamizar uma rede de ensino na qual investiu a sua experiência, e através da qual ampliou a sua influência. Os caminhos da “regionauta” disseminam-se entre os imaginários do flamenco e as oportunidades de ensino, numa logística cultural de cruzamento da fronteira atractiva e familiar. O trabalho desenvolvido desde 1988, permite-nos cartografar uma rede de relações musicais que estabelece conexões entre as povoações raianas do Baixo Alentejo, Extremadura e Andaluzia.

mapa de sevilhanas

As conexões geográficas traçadas por Ana Castilla e pelos grupos de baile, trespassam fronteiras, criam dinâmicas culturais e incorporam o “duende”, que no imaginário do flamenco está para além da técnica e da inspiração. Parafraseando Frederico Garcia Lorca “para buscar al duende no hay mapa ni ejercicio”.

Ana Castilla com grupo de baile Zapatito de Tacón

Ana Castilla com grupo de baile Zapatito de Tacón

 

Referências bibiográficas:
Agudo, Juan & Moreno, Isidoro. 2012. Expresiones Culturales Andaluzas. Sevilla: Aconcagua Libros.
Cruces Roldán, Cristina. 2012. “El Flamenco”, in Agudo, Juan & Moreno, Isidoro (coord.) Expresiones Culturales Andaluzas. Sevilla: Aconcagua Libros, 219-281.
Löfgren, O. 2008. “Regionauts: The transformation of cross-border regions in Scandinavia”. European Urban and Regional Studies, 15 (3), 195-209.
Steingress, Gerhard. 2002. “El flamenco como patrimonio cultural o una construcción artificial más de la identidad andaluza”. Anduli: Revista Andaluza de Ciencias Sociales, 1: 43-64.