“Para buscar al duende no hay mapa” – imaginários do flamenco na raia do Baixo Alentejo

A partir da década de 90 assistimos a contínuas inflexões na difusão, reconhecimento e internacionalização do flamenco, com sucessivas modas, estilismos e tendências, que se incluem nas designadas “músicas étnicas”, ou na World Music (Cruces Roldán 2012, 262). Por outro lado, o estudo do flamenco consolidou-se na academia, adquire representatividade nas indústrias discográficas e cinematográficas, nas artes do espectáculo, em festivais, na moda e em publicações. Nas últimas décadas, os recursos públicos converteram-se em canais de divulgação comercial e institucional, com subvenções à investigação, à patrimonialização e ao ensino oficial. Em 2010 o flamenco foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade, com o apoio de 30.000 pessoas e de 60 países, depois de uma candidatura falhada em 2005. Neste contexto, as escolas de flamenco, de iniciativa oficial ou particular, emergem, como afirmação de uma cultura identitária andaluza, autenticada como Património Imaterial da Humanidade em 2010. O flamenco está presente, mesclado com outros tipos de formas mais folclóricas, como as sevillhanas, em múltiplas festas populares da Andaluzia, em festividades religiosas, feiras de gado e romarias, lugares de encontro de música e baile, como referente identitário da Andaluzia (Agudo & Isidoro 2012).
As populações raianas do Baixo Alentejo partilharam, ao longo do tempo, as sonoridades e a estética performativa do canto e do baile, nas romarias das povoações vizinhas, ou em espaços de sociabilidade e encontros familiares. Na actualidade, o flamenco atrai as gerações mais jovens, que pouco se identificam com o cante alentejano, originando uma diversidade de grupos e de experiências musicais, como o grupo de flamenco “Los Cuatro Vientos”, formado em Moura em Janeiro de 2012, por um grupo de amigos.

No entanto, são os grupos de baile que têm mais expressão e visibilidade, pela rede de ensino e partilha de imaginários musicais que cruzam a fronteira do Baixo Alentejo. Em Barrancos, a prática do flamenco inicia-se em 2001, quando a vereadora da Câmara Municipal de Barrancos contrata a professora e bailarina Ana Castilla para ensinar um grupo de jovens interessadas em aperfeiçoar as técnicas do baile. Ana Castilla nasceu em Cortegana (Huelva) em 1972, formou-se como professora em Sevilla, Huelva y Cadiz e regressou a Cortegana para ensinar a arte. No flamenco encontrou um sentido para a vida, e ao longo dos anos formou grupos de baile em povoações da Sierra de Aracena e Picos de Aroche. Na sequência do trabalho desenvolvido em Barrancos nasce o grupo “Alma Raiana”, apadrinhado pela vereadora da cultura, e é criada a Escola Municipal de Baile. O grupo “Alma Raiana”, com as actuações em festas locais e regionais, despertou o interesse de associações e grupos informais nas localidades raianas de Mourão, Santo Aleixo da Restauração, Serpa, Amareleja e Póvoa de São Miguel.

Para além da rede de ensino Ana Castilla promove iniciativas de fruição local, envolvendo alunos, familiares e membros das comunidades na organização de eventos, como a “Noche Flamenca”. A primeira “Noche Flamenca” realizou-se em Setembro de 2001, em Barrancos, por iniciativa de Ana Castilla e do grupo de baile “Alma Raiana”, com o apoio da Câmara Municipal de Barrancos. O evento assinalava o início da Escola Municipal de Baile, que tem actualmente três grupos: “Zapatito de Tacón”, “Rumbo Flamenco” e as “Flamenguitas”.

Rumbo Flamenco

Zapatito de Tacón

Flamenguitas com Ana Castilla

A 2 de Fevereiro de 2013 foi criado o grupo de baile “Pasión Flamenca” na Amareleja, afirmando a paixão dos seus elementos pela arte do flamenco. O grupo é constituído por treze jovens (doze do género feminino e um do género masculino), naturais da Amareleja, com idades compreendidas entre os 10 e os 25 anos de idade, na maioria estudantes. Alguns dos elementos participaram, em crianças, no primeiro grupo de baile que Ana Castilla dirigiu na Amareleja, em 2003, dependente do financiamento da Junta de Freguesia. A reabilitação da actividade deve-se à acção de um grupo informal, “patrocinado” por familiares e amigos, com o apoio logístico da Associação Cultural e Artística – 4 Esquinas e da Junta de Freguesia de Amareleja. A continuidade do grupo está alicerçada nas relações de amizade que nutrem pela professora. Em Agosto de 2013 assisti à primeira “Noche Flamenca”, organizada pelo grupo da Amareleja, na qual participaram os grupos de baile de Barrancos, de Póvoa de São Miguel (Moura), da Musibéria (Serpa) e de Los Romeros (Huelva).

Ana Castilla com o grupo de baile Pasión Flamenca

Ana Castilla com o grupo de baile Pasión Flamenca

Em Fevereiro de 2013, na Póvoa de São Miguel (Moura) nasceu o grupo de baile “A Mi Manera”, por iniciativa de Isa Caeiro e Sara Rodrigues que encontraram o apoio de amigas e familiares. Ana Castilla foi a professora escolhida para diretora artística, pela experiência, dinâmica e trabalho desenvolvido com os grupos de baile vizinhos. O investimento em guarda-roupa e ensino é suportado pelos elementos do grupo, com o apoio da Junta de Freguesia para o transporte da professora. O grupo é composto por vinte e oito jovens (vinte e sete do género feminino e um do género masculino), com idades compreendidas entre os 6 e os 34 anos de idade. Na sua maioria são estudantes, e naturais de Póvoa de São Miguel. Em 2013 o grupo estreou-se na “Noche Flamenca” de Barrancos, participou na “Noche Flamenca” da Amareleja, e organizou a primeira “Noche Flamenca” em Póvoa de S. Miguel, a 6 de Setembro do mesmo ano.

A 2 de Agosto de 2014 acompanhei a realização da 14ª edição da “Noche Flamenca” em Barrancos, que teve a participação de grupos de baile de diversas gerações de bailarinas, com diferentes níveis de aprendizagem e diversos estilos performativos. Perante uma assistência de cerca de 900 pessoas actuaram mais de 100 bailarinas(os) dos grupos: “Flamenguitas” (Barrancos), Escuela de Baile de Encinasola (Encinasola), Arte & Compás (Santo Aleixo da Restauração), Al Compás del Camino (Granja), Rumbo Flamenco (Barrancos), A Mi Manera (Póvoa de São Miguel), Rosales (Rosal de la Frontera), Buleria (Valencia del Mombuey – Extremadura), Pasión Flamenca (Amareleja), Zapatito de Tacón (Barrancos), para além do grupo de flamenco Val de Reales (Barrancos). No final do espectáculo, a vereadora da Câmara Municipal de Barrancos, madrinha do grupo “Rumbo Flamenco”, reiterou o apoio a uma prática cultural que representa um referente identitário dos barranquenhos.

Isabel Sabino, vereadora da cultura, com Ana Castilla e o grupo de baile Rumbo Flamenco

Isabel Sabino, vereadora da cultura, com Ana Castilla e o grupo de baile Rumbo Flamenco

A 27 de Agosto de 2014 assisti à 1ª Noite Flamenca de Santo Aleixo da Restauração (Moura – Baixo Alentejo), organizada pelo grupo de baile local, Arte y Compás, com a colaboração da professora Ana Castilla, no âmbito da rede de ensino e dinamização do flamenco. O grupo Arte y Compás foi formado em Fevereiro de 2014 por nove elementos do género feminino, com idades compreendidas entre os 17 e os 32 anos. Mas, a primeira experiência de ensino de baile em Santo Aleixo remonta a 2003, quando a presidente da Junta de Freguesia convidou Ana Castilla a iniciar um projecto idêntico ao que desenvolvia em Barrancos. As aulas começaram com um grupo de diferentes faixas etárias, que não teve continuidade. No entanto, o interesse das mais jovens permaneceu latente, e veio a concretizar-se com a criação do grupo de baile Arte y Compás, coordenado por Helena Chamorro. Na abertura do espectáculo, Helena agradeceu ao grupo musical “Os Restauradores” a cedência do espaço da associação para as aulas de dança, assim como o apoio da União das Freguesia de Safara e Stª Aleixo da Restauração, da Câmara Municipal de Moura e da Comissão de Festas de Santo António 2014-2015. Participaram no espectáculo os grupos de baile “Rumbo Flamenco” (Barrancos), “Sueño Romereño “ (Los Romeros-Huelva), “A Mi Manera” (Póvoa de São Miguel -Moura), “Pasión Flamenca” (Amareleja – Moura) e “Arte y Compás” (Santo Aleixo) dirigidos por Ana Castilla, e ainda os grupos: “Rosales” (Rosal de la Frontera-Huelva) e Escola de Baile de Safara (Safara-Moura) dirigidos por antigas alunas de Ana Castilla. O evento reuniu cerca de 500 pessoas, entre familiares, amigos e vizinhos, e encerrou com a actuação do grupo de flamenco “Rocío Lojita”, de Rosal de la Frontera.

1º Noche Flamenca Stº Aleixo

Ana Castilla transformou-se numa “regionauta” (Löfgren 2008), que cruza a fronteira luso-espanhola a partir de Cortegana, para dinamizar uma rede de ensino na qual investiu a sua experiência, e através da qual ampliou a sua influência. Os caminhos da “regionauta” disseminam-se entre os imaginários do flamenco e as oportunidades de ensino, numa logística cultural de cruzamento da fronteira atractiva e familiar. O trabalho desenvolvido desde 1988, permite-nos cartografar uma rede de relações musicais que estabelece conexões entre as povoações raianas do Baixo Alentejo, Extremadura e Andaluzia.

mapa de sevilhanas

As conexões geográficas traçadas por Ana Castilla e pelos grupos de baile, trespassam fronteiras, criam dinâmicas culturais e incorporam o “duende”, que no imaginário do flamenco está para além da técnica e da inspiração. Parafraseando Frederico Garcia Lorca “para buscar al duende no hay mapa ni ejercicio”.

Ana Castilla com grupo de baile Zapatito de Tacón

Ana Castilla com grupo de baile Zapatito de Tacón

 

Referências bibiográficas:
Agudo, Juan & Moreno, Isidoro. 2012. Expresiones Culturales Andaluzas. Sevilla: Aconcagua Libros.
Cruces Roldán, Cristina. 2012. “El Flamenco”, in Agudo, Juan & Moreno, Isidoro (coord.) Expresiones Culturales Andaluzas. Sevilla: Aconcagua Libros, 219-281.
Löfgren, O. 2008. “Regionauts: The transformation of cross-border regions in Scandinavia”. European Urban and Regional Studies, 15 (3), 195-209.
Steingress, Gerhard. 2002. “El flamenco como patrimonio cultural o una construcción artificial más de la identidad andaluza”. Anduli: Revista Andaluza de Ciencias Sociales, 1: 43-64.

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