Práticas culturais contra-hegemónicas na “sociedade do espectáculo”

O neoliberalismo suscitou uma formidável crença na propriedade privada e no livre comércio e fez retroceder os limites do não mercantilizável, ao sacralizar o poder dos mercados sob “o signo da liberdade” (Bourdieu 1998). Os efeitos imediatos desta acção destruidora não é apenas a violência estrutural do desemprego e da precariedade, mas também o desaparecimento progressivo dos universos simbólicos de produção cultural, pela imposição intrusiva dos valores comerciais (Bourdieu 1998, Comaroff e Comaroff 2001, Harvey 2007, Ortner 2011). Neste contexto, a mercantilização da cultura como espectáculo e lazer, assim como a exploração da autenticidade e da criatividade popular, “pressupõe atribuir um preço a coisas que na realidade nunca foram produzidas como mercadorias” (Harvey 2007, 182).

A produção simbólica sobre a lógica do consumo capitalista consolidou valores, conceitos e práticas que sustentam um estilo de vida e de cultura hegemonicamente articuladas com as relações estruturantes. A centralidade do simbólico coloca a imagem, a representação e o espectáculo enquanto características reforçadas pela contemporaneidade. A realidade fragmentada é marcada pela subjetividade e pela arbitrariedade, na escolha dos seus parâmetros constitutivos. No campo simbólico, a realidade é o universo do facto editado, da verdade construída, do desejo sugerido e do consumo intensificado, enquanto prática cultural e parâmetro identitário” (Harvey, 1996: 259-260). A mutabilidade constante, a velocidade e a superficialidade com que a fragmentação da vida quotidiana é apresentada, estabelece uma continuidade com a grande narrativa neoliberal, que passa pela consolidação e universalização da lógica da produtividade e pela mercantilização do simbólico.

A sociedade contemporânea, apesar de cultivar religiosamente o passado, perdeu a capacidade de conhecê-lo, ao viver o “presente perpétuo” (Debord, 1995: 80) de um quotidiano marcado pela superficialidade de conceitos e valores, pelo carácter descartável das suas recriações, e pelo estímulo consumista. A “sociedade do espectáculo” (Debord, 1967) do consumo e da fragmentação representa a negação da própria humanidade na procura da felicidade, por meio da destruição da liberdade de escolha, totalmente preenchida no imaginário pela satisfação garantida, a partir de um real fabricado e de um mundo saturado de imagens. No entanto, “o espectáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (Debord 1995, 8). O debate que proponho articula a interacção global da “sociedade do espectáculo”, como parte decisiva da hegemonia política, com as práticas culturais contra-hegemónicas preservadas pelas comunidades, tomando como objecto empírico as estudantinas, ou danças carnavalescas da raia do Baixo Alentejo, que surgem da espontaneidade e criatividade de grupos não institucionalizados nem mediatizados.

Nas sociedades rurais alentejanas o Carnaval foi uma espécie de “para-raios” para todo o tipo de tensões sociais, que permitia aos trabalhadores rurais revelarem no espaço público as suas aspirações por meio de canções. Até ao 25 de Abril de 1974 os versos das Estudantinas passavam pelo crivo da censura do Presidente da Câmara, ou do regedor, e eram cantados por grupos de homens pelas ruas das vilas no domingo e na terça-feira gorda. O conteúdo de crítica social visava acontecimentos locais, e os comportamentos dos vizinhos sem os nomear, mas alguns versos eram especialmente dedicados às elites rurais:

(…)

O senhor António Vasquez

Homem rico lavrador

Homem de bom coração

Para fazer um favor

É amigo da pobreza

Fala com toda a gente

Trata bem os seus criados

E andam todos contentes.

(…)

(Versos da Estudantina de Barrancos, década de 1940,  recordada por Manuel Agudo dos Santos em 2008)

A representação realizava-se no espaço público, frente à casa do visado, e o lirismo dos textos estava impregnado de relações de poder que demarcavam classes sociais, por meio de mensagens de aparente submissão, que impõem o “pão e o circo” (Veyne, 1976), como concessões políticas conquistadas pelas classes subordinadas. Como assinalou Paul Veyne o poder dominante não oferecia o “circo” ao povo para o despolitizar, o povo é que se politizava contra o poder dominante se este lhe negava o “circo” (Veyne, cit. em Scott, 2003: 263). Isto significa que a classe dominante ao permitir mais “válvulas de escape” que não alterassem a ordem estabelecida, diminuía potencialmente o descontentamento colectivo e a possibilidade de rebelião das classes subordinadas. Como salienta James C. Scott, independentemente das premissas implícitas, que estão por detrás de cada acto de comunicação, o comunicador quer dizer o que disse, e apesar do poder social no Carnaval ser menos assimétrico, o poder recíproco continua a ser poder (Scott, 2003: 248). Se aceitarmos o Carnaval como “a válvula de escape” que permitia libertar o “discurso oculto”, aliviando tensões sociais, não podemos deixar de considerar que os versos estavam condicionados por regras, não apenas de ordem convencional, mas também por um sistema repressivo que condicionava todos os âmbitos da vida social, impedindo qualquer forma de manifestação de descontentamento.

Estudantinas

Estudantina de Barrancos (Barrancos), 1961

O Carnaval, como tema milenário do “mundo às avessas”, que contraria uma visão do mundo “naturalizada”, propiciava práticas rituais que representam uma “segunda vida do povo”, que aspirava temporariamente ao reino da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância, por isso todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, da consciência alegre sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (Bakthin, 2002: 10). Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão e a negação de uma ordem social radicalmente diferente daquela que vivem (Scott, 2003: 126). Das Estudantinas de Barrancos restam apenas algumas fotografias e versos que ajudam a reconstruir a memória de uma prática ritual, que atualmente não mobiliza nem atrai novos colectivos.

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Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2017

Na Amareleja, freguesia do concelho de Moura, com cerca de 2.000 habitantes em 2013, as Estudantinas mantiveram alguma continuidade como prática carnavalesca, independentemente da intervenção da Junta de Freguesia em 1992, ao promover o primeiro concurso de Danças/Estudantinas. Tratou-se de um processo de construção de memória colectiva, para “manter a tradição”, que estabeleceu um roteiro pela vila, assinalando os locais de actuação, que atualmente se mantêm. A Junta de Freguesia da Amareleja também apoia os grupos com 150€, e oferecia um jantar no final do desfile. Mas a crise económica e os consequentes cortes nos apoios municipais à cultura não davam “nem para petiscar…” como assinalavam os versos de uma Estudantina de 2014.

2014

Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2014

A festa começa pela manhã, no lugar dos Barranquinhos, situado no extremo da vila, e termina no Regato, o coração da vila alentejana. Os grupos percorrem as ruas criando o seu roteiro de atuações, mas todos convergem no Lar de Idosos, frente à Casa do Povo e no Regato. Os vizinhos assomam-se às janelas e às portas, para partilharem do riso e da crítica social, e alguns contribuem com o que podem para a coleta dos grupos no final das atuações. Ao longo do percurso são recebidos em casas de amigos e familiares que lhe oferecem comida e bebida. “- É a folia que nos chama!”, dizem uns versos, reafirmando que “a Amareleja tem mais cor quando chega o Carnaval”.

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Estudantina de António Guerreiro, Amareleja (Moura), 2015

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Estudantina de Manuel Estevão, Amareleja (Moura), 2015

Nos últimos anos, a festa carnavalesca da Amareleja reúne grupos provenientes da Granja, Safara, Santo Amador e Santo Aleixo da Restauração, povoações vizinhas desertificadas que no passado reuniam localmente diversos grupos de Estudantinas. Atualmente apresentam a sua estudantina integrados no desfile organizado pela Junta de Freguesia, que se inicia junto à Igreja Matriz, e percorre a principal artéria da vila, com atuações frente à Junta de Freguesia, nas 4 esquinas e no Regato, lugar para onde converge o público (locais e forasteiros).

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Estudantina de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2017

Estes grupos afirmam-se como protagonistas intemporais de um passado que aspira ao futuro e à transformação da sociedade, por meio da linguagem do corpo, do discurso de resistência à versão oficial do mundo, do espírito ambivalente e regenerador, da alegria e da abundância de comida na celebração da vida colectiva. Os participantes, de ambos os sexos e de diferentes faixas etárias, estão vinculados entre si por laços de parentesco, de vizinhança e de amizade e partilham a mesma visão do mundo. Quase todos os participantes evocam algum familiar com o qual se estrearam nas Estudantinas, prática que preservam e reivindicam como herança cultural.Cada grupo cria um repertório caracterizado por temáticas que articulam as problemáticas reais da comunidade local, com as imagens globais da “sociedade do espectáculo”. Os temas de crítica social representam uma “visão do mundo” de falsas promessas eleitorais, de alterações de valores e perdas de direitos sociais. As canções denunciam o desemprego e as falsas expectativas criadas pelos cursos de formação, os subsídios da União Europeia para “os jovens agricultores”, que nada produzem, os conflitos políticos entre os representantes do poder local, as promessas não cumpridas em torno da construção de um Pavilhão, do abastecimento da água, ou do direito aos serviços de saúde.

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Estudantina de Hortense Lameira, Amareleja (Moura), 2017

No contexto sociopolítico contemporâneo os políticos e as figuras mediáticas são destituídas das suas funções e posições sociais, para surgirem em situações que desafiam o riso colectivo, ambivalente e universal, que nega e afirma o permitido, o proibido, a censura e o excesso. A “sociedade do espectáculo” é desconstruída localmente, a partir de casos mediatizados (“o Sócrates”, “o terrorismo” e a intolerância religiosa), ou de programas de televisão como “A casa dos segredos”.

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Estudantina de Carlos Prazeres, Amareleja (Moura), 2017

As Estudantinas resistem à “sociedade do espectáculo” pelo espírito ambivalente e regenerador que preserva o sentido mítico e colectivo da celebração, na qual prevalecem as comunicações personalizadas. A cultura como parte decisiva da hegemonia política impõe a discussão em torno de práticas culturais contra-hegemónicas, como possibilidades alternativas ao futuro das sociedades. Esta “transgressão” temporária, que não altera a ordem social, aspira a instaurar a verdade no mundo ao denunciar as falácias do discurso hegemónico. Os participantes aspiram sobretudo à partilha colectiva da abundância e da alegria, na esperança de um futuro renovado.

(…)

Andam esses presidentes

Loucos com más intenções

Pra não espalhar a Peçonha

Fazem muros de vergonha

Pra meter medo às nações.

Não podemos entender

A razão de tanta guerra

Quando é que o homem faz

Um exército de paz

Para as crianças da terra.

(…)

(Versos da Estudantina de Hortense Lameira, 2017)

 

 

Referências bibliográficas

Bakthin, Mikhail. 2002 (1941). A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento São Paulo: Hucitec, Annablume Editora.

Bourdieu, Pierre. 1998. “The essence of neoliberalism”, Le Monde Diplomatique. Dezembro. https://mondediplo.com/1998/12/08bourdieu.

Comaroff, Jean e John Comaroff. 2001. “Millenial Capitalism: First Thoughts on a Second Coming”. In Millenial Capitalism and the Culture of Neoliberalism, editado por Jean Comaroff e John Comaroff, 2-56. Durham: Duke University Press.

Debord, Guy. 1995 (1967). La sociedad del espectáculo. Santiago de Chile: Ediciones Del Naufragio. http://criticasocial.cl/pdflibro/sociedadespec.pdf.

Harvey, David. 2007. Breve historia del Neoliberalismo. Madrid: Ediciones Akal.

– 1996. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola.

Ortner, Sherry. 2011. “On Neoliberalism”, Anthropology of this Century 1. http://aotcpress.com/articles/neoliberalism/.

Scott, James C. 2003 (1990). Los Dominados y el Arte de la Resistencia. México: EditorialTxalaparta.

 

(Comunicação apresentada na Jornada de Estudos Memória Património e Devir: entre futuros passados e tempos inéditos,  organizada pelo Instituto de História Contemporânea e Instituto de Etnomusicologia – Centro de Música e Dança (INET-md). Lisboa, FCSH-UNL, 20 de Abril de 2017. Programa disponível em: http://www.inetmd.pt/images/JornadaPatrinonioDevirPrograma.pdf)

 

 

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