As mulheres e o cante alentejano: processos, práticas e imaginários futuros

O processo de institucionalização dos grupos corais masculinos como representações da cultura expressiva alentejana, marginalizou as mulheres da prática formal do canto, mas não as impediu de cantar. Na sequência do contexto revolucionário de 1974 surgiu o primeiro grupo coral feminino, mas foi a partir da década de 1990 que as mulheres conquistaram o espaço público (Cabeça e Santos, 2010). A partir de uma etnografia extensiva e intensiva realizada na raia do Baixo Alentejo, entrelaçada com fontes documentais e bibliográficas trago ao debate a “cultura popular” como construção social em permanente actualização, para questionar os processos que atribuem visibilidade e invisibilidade a práticas musicais, tomando por eixo central a acção das mulheres na preservação do cante alentejano.

(…) eu ouvia sempre com muito agrado o canto das ceifeiras de Serpa, pela madrugada. Na verdade não sei de coisa mais bela no seu género. As ceifeiras formavam rancho, juntando-se num ponto da vila, às vezes no lado oposto àquele para onde tinham de seguir e, enquanto atravessavam a vila, iam sempre a cantar. Uma fazia alto, geralmente a que cantava melhor, e as restantes, distribuindo as vozes, faziam o coro. Ninguém ensinou as ceifeiras a cantar, mas o certo é que o seu canto tem muita arte. Num outro país que não fosse Portugal dominado pelo fascismo, o canto das ceifeiras de Serpa ter-se-ia tornado conhecido por todo o país e por muitos pontos do mundo (Francisco Miguel, Uma vida na Revolução, 1977: 27).

A noção de “cultura popular” conceptualizada no âmbito dos estudos folclóricos do século XIX, representa na actualidade o resultado dinâmico da intersecção de vários processos de construção social que a transformaram numa categoria analítica, ideológica, política, simbólica e social. Como nos recorda Jacques Revel (1989: 47) a cultura das elites moldou a “cultura popular” que melhor se ajustava ao contexto político de cada época, com o propósito de não a negar, mas de mostrar as relações estratégicas entre os atores sociais que agem por detrás da constituição das identidades culturais.

(…) A cultura popular é rebelde em defesa do costume (…) contra as intromissões das elites e do clero (…) consolida os costumes que servem os interesses de uma classe subalternizada (…) não era fatalista, antes oferecia consolo e defensas para o curso de vidas totalmente determinadas e restringidas (Thompson, 1979: 50).

(…) a cultura popular teve de ser censurada para passar a ser estudada e tornar-se objecto de interesse (…) o prazer experimentado pela auréola “popular”, que cobre melodias inocentes está precisamente na base de uma concepção elitista da cultura (Certeau e Julia, 1989: 53).

(…)  nação deveria possuir um passado (…) comum, (…) uma cultura popular nacional, e coube aos etnógrafos e eruditos locais a fixação desses requisitos, numa versão autorizada e intemporal do povo enquanto essência da nação (Leal, 2000: 18).

Durante a ditadura portuguesa [1933-1974] a ofensiva moralizadora da Igreja e do Estado conduziu a um vasto processo de disciplinação e doutrinação pelo folclore, como instrumento funcional de coação ideológica e “domesticação” do camponês, detentor das marcas singulares da identidade nacional. A partir de 1933 o Estado Novo controlou todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações politicas, sociais e culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. A organização corporativa e a diversidade dos seus organismos, primários e intermédios, serviram como instrumentos centrais de doutrinação ideológica, vigilância política e padronização de comportamentos quotidianos, no trabalho e no lazer, como aparelho central do controlo totalizante da sociedade portuguesa. A “cultura popular” como essência da nacionalidade, e a propaganda como meio eficaz à difusão da retórica nacionalista envolveram um conjunto de actores sociais, instituições e organismos corporativos fundamentais à difusão do ideário do regime. A partir da década de 1940 estabeleceu-se uma relação de dominação com os ranchos folclóricos através das Casas do Povo, na selecção de repertórios e trajes, e no controlo dos seus elementos por parte de delegados da FNAT, que moldaram os grupos corais masculinos alentejanos à forma que hoje conhecemos.

Organismos de doutrinação pelo Folclore

  • Casas do Povo, 1933.
  • Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), 1933; Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) a partir de 1945.
  • Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) (1935-1974).
  • Programas da Emissora Nacional: Alegria no Trabalho” (FNAT), e “Serão para Trabalhadores” (1941-1974).
  • Junta Central das Casas do Povo (1945-1974.
  • Gabinete de Etnografia da FNAT,
  • Mensário da Casa do Povo (1946-1971).

A “Alegria” como construção ideológica enquadrada na doutrina corporativista do Estado Novo, encontrava nos programas da Emissora Nacional “Alegria no Trabalho” e “Serão para Trabalhadores” um poderoso meio de difusão da ideologia fascista, por meio de sessões de propaganda política da União Nacional e do entretenimento. Segundo o seu mentor, António Ferro, “toda a alegria é assim possível, mais ainda necessária, desde que atrás dessa alegria exista uma doutrina séria, uma finalidade a atingir” (Ferro cit. em Moreira, 2012: 97). Neste contexto, a “cultura popular” devia ser comemorada através de festivais de folclore, concursos de cantares e espectáculos direccionados “para o embelezamento de um país visto como uma realidade de natureza cénica” (Leal, 2000: 58). O primeiro espectáculo de cantares alentejanos foi organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo) a 22 de Março de 1937 no Teatro São Luís, em Lisboa, para as elites da capital, e contou com a presença do Ministro da Educação Nacional e do director da Emissora Nacional. No sarau actuaram os Ranchos de Cantadores de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). A Casa do Alentejo teve sempre um papel relevante na inscrição da “província nas políticas do Estado português, e na construção de um imaginário dos usos e costumes do ‘ser português”, como bem assinalou a etnomusicóloga Maria do Rosário Pestana (2014: 23).

Foto do Sarau publicada no Diário do Alentejo, de 25 de Março de 1937.

Troféu oferecido aos grupos participantes, 1937.

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A institucionalização dos grupos masculinos marginalizou as mulheres do cante formal, e um conjunto de traços associados a esta prática colectiva desapareceram, nomeadamente os grupos mistos, o acompanhamento com instrumentos musicais (viola campaniça, harmónio e pandeiro) e o baile. José Alberto Sardinha (2001) diz-nos que não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar, e que os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar. Segundo este autor “a polifonia tradicional do canto alentejano só tinha uma regra fixa no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto” (2001: 29). As vozes femininas estavam ainda presentes na recolha realizada pelo folclorista Armando Leça junto de ranchos do Baixo Alentejo (1939-1940). As gravações cumpriam uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade (1140) e o terceiro da Restauração (1640). O registo em fita magnética ficou a cargo da Emissora Nacional, mas a edição discográfica não chegou a realizar-se, devendo-se ao estudo de Maria do Rosário Pestana (2014) a recuperação do espólio e gravações de Armando Leça, importante contributo tanto para as comunida­des de origem, como para músicos, estudiosos e público em geral.

Rancho Misto de Vila Verde de Ficalho que se apresentou a 30 de Novembro de 1940 na conferência “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, proferida por Armando Leça no Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), em Lisboa.

As vozes das mulheres conquistam o espaço público após a Revolução de Abril de 1974, com os grupos corais a alargarem os espaços de actuação a comícios e manifestações dos trabalhadores. No Alentejo formaram-se novos agrupamentos associados a Unidades Colectivas de Produção e surgiu o primeiro grupo coral feminino “Flores de Ervidel” em 1979 no contexto da Reforma Agrária. Ao ocuparem as terras e organizarem-se em unidades colectivas de produção homens e mulheres envolveram-se pela primeira vez na vida social e política das suas vilas e aldeias, e criaram novas cantigas que correspondiam ao sentimento de esperança que cimentava a Revolução de Abril. Com o apoio das autarquias os grupos criaram-se novos modelos de espectáculos – os Encontros de Grupos Corais – que substituíram os antigos concursos de Cantares Alentejanos organizados pelo SNI.

A partir da década de 80, com a destruição da Reforma Agrária e a implementação da política agrícola europeia, abandonaram-se as cantigas de intervenção social. No Alentejo e na Diáspora os grupos cantavam a terra, e reassumiam os modelos de “autenticidade” ditos tradicionais. Os repertórios cristalizaram-se a favor da revitalização da performance, por meio de trajes que remontam a “uma espécie de universo mítico de enunciação”. Assistiu-se a um processo de “re-folclorização” desenvolvido por autarquias e outras instituições de âmbito local e nacional, mediado por estudiosos e promotores locais. A re-folclorização trespassou as fronteiras da ruralidade e transformou-se num fenómeno urbano, com o número de grupos a aumentarem, e as mulheres a cooperarem activamente, animadas de um forte sentido lúdico e participativo. Em 1998 o inquérito realizado pelo Instituto de Etnomusicologia aos grupos de música tradicional dava conta da existência de 10 grupos femininos num total de 164 grupos de cante alentejano. Em 2013 o inquérito realizado pela Universidade de Aveiro aos grupos corais amadores registou a existência de 42 grupos corais femininos alentejanos. Em 2019, segundo o registo da Casa do Cante de Serpa existem 54 grupos femininos e 21 mistos. A formação de novos grupos, femininos e mistos deveu-se ao impacto que a candidatura e inscrição do Cante na lista representativa da UNESCO teve nas comunidades. A inscrição do Cante aumentou a auto-estima e o orgulho das pessoas envolvidas neste modo de expressão, como testemunha Leonor Burgos (Barrancos, 1947), coordenadora do grupo coral “Vozes de Barrancos” criado em Janeiro de 2015, por 18 mulheres com idades compreendidas entre os 54 e 78 anos.

(…) O reconhecimento do Cante a Património da Humanidade também teve muita influência, porque Barrancos sempre cantou, havia aqueles grupos que cantavam tão bem e agora não há ninguém a cantar, quando sempre houve aqui a tradição de cantar espanhol e alentejano. E foi também por isso que eu me lembrei disto, porque temos de continuar e temos de o manter. (…) Eu sempre cantei, na minha casa se cantava muito quando eu era nova e aprendi, aprendi, e a vontade de cantar foi sempre muita (Leonor Burgos, Barrancos, 27. 04. 2015).

Grupo coral feminino “Vozes de Barrancos” com a Drª. Isabel Sabino, madrinha do grupo e vereadora da cultura da CMB em 2015.

As mulheres Barranquenhas

(autoria do grupo)

(…)

Nós mulheres barranquenhas

Também sabemos cantar,

Agora com mais idade,

Temos um grupo coral.

 

Temos um grupo coral,

Foi esse o nosso destino

Em Barrancos nunca houve,

Um grupo tão feminino.

 (…)

A participação das mulheres transcende a prática do canto como actividade lúdica e criativa, no desempenho de tarefas organizativas e de divulgação dos grupos dentro e fora das suas localidades, apoiadas em redes informais tecidas nas comunidades. Das suas actividades destaco a organização anual de Encontros de Grupos Corais destinados a festejarem o aniversário dos grupos. Do conjunto de Encontros observados realço o de Vila Verde de Ficalho, organizado pelo grupo coral feminino “Flores do Chança”, formado em 2008 por vinte e uma mulheres, com idades compreendidas entre os 35 e os 80 anos de idade, que segundo a sua coordenadora Margarida Castelhano, “começou por brincadeira, mas o povo gostou tanto que passou a ser sério”. Treze das cantadeiras são desempregadas de longa duração e sete estão reformadas. Nas suas actividades quotidianas desdobram-se em tarefas domésticas, no apoio aos filhos e netos, em trabalhos precários e na prática do Canto, com ensaios semanais e espectáculos aos fins-de-semana. Para além dos convites para actuarem noutras localidades, em função das redes construídas ao longo do tempo, participam em todas as festas da vila, cantando e angariando fundos por meio de quermesses. A organização do Encontro depende do trabalho voluntário destas mulheres, que procuram os apoios necessários à sua concretização junto da Câmara Municipal de Serpa, Junta de Freguesia de Ficalho e da Caixa de Crédito Agrícola. Os grupos participantes são convidados com meses de antecedência, segundo uma lógica de reciprocidade. Isto significa um sistema de trocas entre iguais, em que a obrigação de retribuir é imperativa, fortalecendo-se na troca as relações sociais estabelecidas. Feitas as compras necessárias ao jantar oferecido no final do Encontro aos participantes e convidados e contratada uma vizinha como cozinheira, as cantadeiras asseguram a organização da cozinha, o arranjo da sala multiusos cedida pela Junta de Freguesia, as ofertas e recepção aos grupos convidados que acompanham no desfile pelas ruas da vila. A liderança destas mulheres provém da intensidade do compromisso com as comunidades, de superarem desafios e imaginarem futuros, para além das limitações e das dificuldades da vida quotidiana. O “espírito empreendedor” não se inscreve na lógica empresarial capitalista, antes numa economia alternativa de trocas simbólicas, baseada na cooperação, na interdependência e na reciprocidade, que como afirmou Polanyi, “são mais necessárias à existência humana do que os princípios de mercado que desenraízam e desumanizam” (Polanyi, cit. Eriksen 2016: 206). Neste sentido, os Encontros não são espectáculos musicais direccionados para o turismo, antes celebrações de fruição local que não dissociam o canto de uma cultura incorporada, como valor de pertença a um “lugar social”, com significado identitário, relacional e histórico, pertencente a um mundo global.

Jantar convívio no final do Encontro, 2015.

Grupo coral “Flores do Chança”, 2015.

A ideia de mundialização do Cante veio criar expectativas diferenciadas nos actores sociais envolvidos no processo de patrimonialização. Os promotores direccionam-se para a internacionalização do património cultural português, e a oportunidade de interacção do Cante com outras tradições polifónicas do mundo. As entidades públicas e privadas orientam as suas expectativas para a valorização da região do Alentejo, como produto posto em valor ao serviço do turismo. Os “portadores da tradição” partilham as mesmas expectativas de Margarida Castelhano (Vila Verde de Ficalho, 1947):

(…) Acho que agora tem mais valor o nosso cante, que antigamente já tinha valor para nós, mas agora é uma coisa diferente, é uma coisa mais divulgada no mundo inteiro. Penso que amanhã teremos melhores condições (…) espero que agora tenhamos mais privilégios, de gravar um CD, espero bem que sim. Tenho esperança que a gente vá divulgando o cante, que chegue mais longe e consigamos ir lá fora, não é irmos só aqui a terras pequeninas. (Margarida Castelhano, Ficalho, 23. 05. 2015).

O futuro dos grupos depende dos meios e dos materiais culturais que dispõem, das redes de relações que construíram, das posições sociais que ocupam nas suas comunidades, e do poder das comunidades a nível regional e nacional. Em contextos rurais envelhecidos e economicamente desarticulados o potencial do canto como recurso cultural sustentável é fundamental ao desenvolvimento humano (Turino 2009), porque não só as pessoas o sustêm, como ele sustem as pessoas. A gestão desta herança cultural implica a criação de modelos participativos, através de uma acção consertada entre grupos, autarquias e membros da comunidade. A salvaguarda do canto depende das condições de habitat em que as pessoas podem continuar a desenvolver as suas actividades, de distintas formas e por múltiplas razões. Como saber musical vinculado a memórias colectivas e práticas alimenta-se da criatividade, componente necessária à construção de imaginários e narrativas que atribuem sentido e significado à vida das pessoas, como Maria Rosa Campaniço, cantadeira do grupo “Flores do Chança”, transmite nos versos da moda que dedicou ao Cante em 2017:

(…)

Damos louvores a quem canta
Para todo o mundo alegrar
Nessas lindas melodias
Mostramos a nossa alegria
E o gosto pelo cantar.

Pomos a alma na voz
Alegram-se os corações
Tanta voz junta a cantar
Sem nenhuma destoar
Cativando as multidões.

O futuro do canto alentejano como expressão cultural e prática colectiva reside na poesia, como narrativa de vida identificada por Michel Giacometti, quando afirmou que “os cantos alentejanos actualizam as letras que frequentemente reflectem (…) os problemas, as tensões e as situações sociais do momento. (…)” (Giacometti, em Oliveira, 2017: 174). O futuro do Cante como património entrelaça-se no processo de re-socialização das práticas e das políticas, que a sociedade necessita na actualidade (Criado e Barreiro, 2013). O desafio reside em converter o campo patrimonial num activo campo de agenciamento social alternativo e contra-hegemónico, através do reconhecimento dos processos de participação social e de modelos de gestão e socialização de práticas que permitem construir o futuro.

Referência bibliográficas

Alves, Vera. 2013. Arte Popular e Nação no Estado Novo. A Política Folclorista do Secretariado de Propaganda Nacional. Lisboa: ICS.

Branco, Jorge Freitas. 1999. “Autoritarismo Político e Folclorização em Portugal: O Mensário das Casas do Povo (1946-1971)”, in Actas del VIII Congreso de Antropología, 29-45. Santiago de Compostela: Associón Galega de Antropoloxia.

Cabeça, Sónia Moreira e Santos, José Rodrigues dos. 2010. “As mulheres no Cante Alentejano”, in Proceedings of the International Conference in Oral Tradition. Ourense: Concello de Ourense.

Certeau, Michel de, e Julia, Dominique. 1989. “A beleza do morto: o conceito de ‘cultura popular’”. In  A Invenção da Sociedade, coord. Jacques Revel, 49-79. Lisboa: Difel.

Criado, Felipe Criado e Barreiro, David. 2013. “El patrimonio era otra cosa”. Estudios atacameños, 45: 5-18.

Leal, João. 2000. Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Melo, Daniel Seixas de. 2001. Salazarismo e Cultura Popular (1933-58). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

Moreira, Pedro Filipe Russo. 2012. “Cantando espalharei por toda parte”: programação, produção musical e o “aportuguesamento” da “música ligeira” na Emissora Nacional de Radiodifusão (1934I1949). Tese de doutoramento em Ciências Musicais – ramo Etnomusicologia, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Pestana, Maria do Rosário (coord.). 2014. Alentejo: vozes e estéticas em 1939/1940. Edição crítica dos registos sonoros realizados por Armando Leça. Tradisom Produções Culturais.

Oliveira, Luís Tiago de. 2017. “O Alentejo de Michel Giacometti”. In Cantar no Alentejo. A Terra, o Passado e o Presente, coord. de Maria do Rosário Pestana e Luísa Tiago de Oliveira, 151-181.  Estremoz Editora.

Ramos do Ó, Jorge. 1999. Os Anos de Ferro: O Dispositivo Cultural durante a “Política do Espírito”(1933-1949). Lisboa: Editorial Estampa.

Revel, Jacques. 1989. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel.

Sardinha, José Alberto. 2001. A Viola Campaniça: O Outro Alentejo. Sons da Tradição, vol.1, Tradisom Produções Culturais.

Silva, Augusto Santos Silva. 1994. Tempos cruzados: Um estudo interpretativo da Cultura. Porto: Edições Afrontamento.

Thompson, E. P. 1979. Tradición, Revuelta y Conciencia de Clase. Barcelona: Editorial Crítica.

Turino, Thomas. 2009. “Four Fields of Music Making and Sustainable Living”. The World of Music 51, (1): 95-117.

 Notas:

A Missão da Casa do Cante é a salvaguarda do Cante Alentejano, cuja Visão é a Sustentabilidade do Território através da Identidade, e onde os objetivos são criar projetos que autossustentem e valorizem os elementos de uma identidade em constante dinâmica. Disponível: http://www.casadocante.pt/

Vídeos realizados sobre o cante no feminino, durante o trabalho de campo:

III Encontro de Grupos Corais em Barrancos (Baixo Alentejo), 20 de Junho de 2018. URL: https://www.youtube.com/watch?v=NwVzPBvdfCc

Jornadas Cante no Feminino (Casa do Alentejo – Lisboa)”, organizado pelo MDM. Lisboa, 30 de Abril, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=TZtBZVORCmc

Grupo Coral Feminino “Vozes de Barrancos” (Barrancos – Baixo Alentejo), 15 de Março, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=UhGs6kjOqeU

5º Encontro de Coros Femininos Alentejanos (Feijó – Almada), 12 de Março, 2016. URL: https://www.youtube.com/watch?v=lIKQhZjPqYs

Grupo Coral “Flores do Chança” – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)”, 26 de Maio de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=a8pNqQtOrfM

Encontro de Grupos Corais – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 23 de Maio de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=hbX-gnXcilI

Homenagem ao Cante Alentejano – Barrancos (Baixo Alentejo)”, 26 de Abril de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=yab72LpT6Po

Homenagem ao Cante Alentejano – Amareleja (Baixo Alentejo), 10 de Janeiro de 2015. URL: https://www.youtube.com/watch?v=jLy85Yn5AqM

 

(Comunicação apresentada nas XVII Jornadas de Cultura Popular. Colóquio: Ofícios, Cantos e Contos, a mulher e a cultura popular , organizado pelo GEFAC, Coimbra, 30 de Março de 2019.)

 

 

Expressões simbólicas de resignificação da fronteira nas festas patronais de Vila Verde de Ficalho e Rosal de la Frontera

A fronteira luso-espanhola representa hoje um espaço recriado pela nova “mitologia turística”, e pelos fluxos de pessoas (turistas e excursionistas) que a transformaram num lugar de diversão e lazer (Cairo et al, 2018). Desde o Tratado de Maastricht (1992) que o turismo foi oficialmente reconhecido como um dos eixos de desenvolvimento nas periferias rurais da Europa, vinculado à promoção de uma consciência regional que refletiria a ambição de promover a integração através das fronteiras internas da União Europeia (Prokkola, 2007: 124). As populações fronteiriças vivem um tempo de novas modalidades relacionais e de “revitalização festiva” (Boissevain, 1992) com “invenções de tradições” (Hobsbawm e Ranger, 1983) por parte dos municípios e agentes culturais, que tentam resistir ao fenómeno ilustrado pelos diagnósticos socioeconómicos da União Europeia que apontam para o envelhecimento e desertificação do território. Em contextos festivos as povoações fronteiriças são ciclicamente reativadas e resignificadas, principalmente em festas patronais representativas de uma “herança cultural” preservada, misturada na atualidade com as transformações sociais que a acompanham. As festas patronais refletem ainda, as construções simbólicas socialmente estabelecidas e partilhadas pelos membros das comunidades, representativas de uma “teia de significados” (Geetz, 1973) que entrelaça maneiras de pensar, sentir, festejar e imaginar o mundo.

As sequências rituais encontradas nas festas patronais das vilas raianas de Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo – Portugal) e Rosal de la Frontera (Huelva – Espanha) servem para questionar as expressões simbólicas de resignificação da fronteira, associadas à construção de “lugares antropológicos” (Augé, 1992) com significados identitários, relacionais e históricos. A resignificação dos lugares só pode ser entendida no contexto festivo, no sentido em que deixam de estar relacionados com a vida ordinária e quotidiana das populações, para se tornarem atributo de entidades religiosas, insígnias de identidades e significantes de relacionamentos e compromissos interpessoais específicos. Os sentidos dos lugares obedecem a sequências rituais mediadas pelos Santos, que destacam o lugar da fronteira e as relações de vizinhança construídas no tempo longo. Nestes lugares convergem atividades religiosas e lúdicas que reforçam a partilha do que é comum às comunidades: como a cerimónia do recebimento na fronteira, o desfile pelas ruas das vilas; os atos devocionais; a saída ao campo; o caminho; a comensalidade; a liturgia; a procissão; a música e o baile. É ao nível do recorte sensível do que é comum às comunidades, nas suas formas de visibilidade e organização que se coloca a questão da construção dos lugares na relação entre as pessoas, os Santos e a música, como cristalização dos desejos, das esperança e dos imaginários partilhados.

As mulheres e os homens que inventam o mundo

A festa da Senhora das Pazes é organizada por uma Comissão composta por pessoas de diferentes géneros, idades e condição social, nomeados pelos festeiros cessantes, no ultimo dia da festa. A lista de nomeados ascende a mais de uma centena de pessoas, que podem aceitar ou recusar a passagem do testemunho. Numa primeira reunião fazem o balanço da festa anterior, mas discutem principalmente o que pode ser melhorado, porque cada Comissão aspira sempre à melhor festa. Numa ampla assembleia de iguais apresentam-se ideias e distribuem-se tarefas em função das experiências e competências formais e informais de cada um. A Comissão dispõe ainda de instalações, graciosamente cedidas pela Junta de Freguesia, para reuniões e organização de eventos ao longo do ano. A Romería de San Isidro é organizada por um grupo de vinte pessoas de diferentes géneros e idades membros da Hermandad, uma associação formalmente estruturada e hierarquizada com personalidade jurídica, cujo regime de sucessão hereditário foi substituído pela votação pública de listas, apresentadas por grupos de amigos, de quatro em quatro anos. O presidente e os membros da Hermandad são laicos outorgados pelas autoridades eclesiásticas a darem culto à imagem de San Isidro na capela paroquial e na ermida. Para a organização de festas e espetáculos ao longo do ano possuem bens patrimoniais na vila, para além da Casa da Hermandad junto à ermida no campo, destinada a acolher os participantes da festa. Em ambos os casos a maioria dos organizadores não residem em Ficalho nem em Rosal, trabalham e estudam nas cidades mais próximas, ou nas capitais dos respetivos países e outros estão emigrados em países europeus. Mas a distância não os impede de participar e contribuir para as respetivas festas, com os seus saberes e redes de conhecimento. Aos fins-de-semana ou nos períodos de férias anuais, em função da disponibilidade de cada um, colaboram ativamente na organização, na angariação de fundos e durante as festividades  Estes coletivos asseguram a continuidade de uma tradição religiosa-popular, por meio da partilha de experiências, materializadas em diversas iniciativas realizadas ao longo do ano, que permitem custear a contratação de agrupamentos musicais e do fogo-de-artifício que animam e prestigiam as festas.

Comissão de Festas de Ficalho, 2014.

Hermandad de San Isidro, 2014.

A eficácia simbólica dos Santos unificadores

O culto à Senhora das Pazes conta-nos uma história convertida em Lenda, que em tempos remotos, num confronto militar entre portugueses e espanhóis pela defesa das suas fronteiras, surgiu um vulto entre os soldados de ambos os lados, reconhecido como uma visão da Virgem. Daí nasceu a nomeação da Senhora das Pazes, no sentido da reconciliação, de estar em Paz com. Nesse lugar, junto ao rio Chança, que delimita a fronteira luso-espanhola, foi construída no séc. XVI uma ermida, que se transformou num lugar de culto e peregrinação de portugueses e espanhóis. A institucionalização da romaria no séc. XVIII deveu-se à intervenção da 2ª Condessa de Ficalho em pagamento de uma promessa, na sequência de uma contenda entre os seus filhos e os fidalgos de Aroche (Huelva). A Lenda cristalizou-se num mito unificador das comunidades raianas, ciclicamente renovado por meio de rituais, símbolos e expressões musicais.

A romaria de San Isidro foi criada em 1942 pelo pároco de Rosal de la Frontera, para unificar uma comunidade rural profundamente fraturada pelas consequências da repressão franquista durante e após a guerra civil espanhola. O culto popular ao Santo madrileno remonta historicamente aos finais do séc. XII, apesar da beatificação e reconhecimento institucional só ter ocorrido no séc. XVII. San Isidro foi um símbolo religioso útil ao poder municipal de Madrid para cimentar a imagem da nova capital do Império Hispânico, que albergava a corte, para além de um grupo heterogénico de habitantes e forasteiros, muçulmanos e cristãos. A construção social e institucional do Santo, a partir do séc. XVI, como humilde lavrador, nascido numa família de cristãos mozárabes, devoto, solidário e milagreiro, redundou numa aparente coesão religiosa, útil a um poder interessado em consolidar a coesão social (Zozaya Montes, 2011: 12).

Procissão no campo à Senhora das Pazes, 2014.

Procissão no campo a San Isidro, 2014.

  Resignificação simbólica dos lugares no cerimonial de recebimento

O lugar designado por “Azinheira dos Guiões”, situado no limite da vila de Ficalho junto à estrada internacional, representa um lugar com significado. A azinheira centenária que o nomeou já não existe, excepto na memória coletiva, o espaço envolvente é hoje ocupado por um posto de gasolina e um restaurante com parque de estacionamento, que preenchem as necessidades da vida quotidiana das populações. No contexto festivo, este lugar liminar adquire significado identitário e relacional, por meio do cerimonial de recebimento da Comissão de Festas de Ficalho aos grupos de festeiros e respetivos guiões das povoações vizinhas, convidados para a festa. Por meio de um ritual em que os guiões se tocam, trocam-se gestos e sentimentos fraternos, canta-se e renovam-se as relações de vizinhança. A Hermandad de San Isidro retribui o recebimento no “lugar da aduana”, que marca o limite da vila e recorda o poder do Estado na fronteira. A aduaneira foi desativada com a abertura das fronteiras, e o espaço reabilitado como posto de controlo da Policia de Transito. No contexto festivo representa o lugar da troca e da partilha de sentimentos de pertença comunal entre populações fronteiriças.

Azinheira dos Guiões, V.V. de Ficalho, 2014

Lugar da aduana, Rosal de la Frontera 2014.

Ritual de agregação no espaço das comunidades 

Ao cerimonial de boas vindas segue-se o desfile dos grupos de festeiros, com os seus pendões, insígnias e estandartes pelas ruas das vilas. Em Ficalho o cortejo foi encabeçado pelo grupo de bombos de Vila Nova de São Bento que anuncia a chegada dos convidados, seguidos da Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Reguengos, dos membros da Comissão de Festas com o guião da Senhora das Pazes e São Jorge, dos festeiros convidados e por ultimo a Banda Filarmónica de Serpa. Alguns residentes assomam-se às portas ou janelas para assistirem ao desfile, outros juntam-se aos participantes até ao largo da Igreja Matriz. O percurso pelas ruas da vila integra simbolicamente os vizinhos no espaço da comunidade, onde são saudados e recebidos pelas autoridades e associações locais, em lugares com significado político e social.

Em Rosal de la Frontera o desfile até à Igreja Matriz do Rosal é encabeçado por um grupo de tamborileiros, seguidos dos membros da Hermandad com o guião de San Isidro e seus estandartes, e dos representantes da Comissão de Festas de Ficalho com o seu guião. Ao longo do percurso os santos são saudados fervorosamente pela população, que se junta ao cortejo cantando ao som de pandeiretas e tambores, numa manifestação coletiva de exaltação festiva, que mistura sentimentos e emoções expressas na letra de uma canção popular espanhola.

(…)

Hay un pueblo madre que Rosal se llama

Tiene a San Isidro como su patrón

Él es deseado en su romería

Allá le acogimos llenos de ilusión.

Qué bonito cuando llega

La vecina Portugal

Con su Virgen de las Paces

Como signo de amistad.

Consejero San Isidro

El cónsul de la amistad

De sentirnos tan unidos

Como rosas de un Rosal.

(autoria da Hermand de San Isidro, 2014)

Lugares liminares de religiosidade popular: as ermidas

As ermidas no campo, situadas na periferia do espaço comunitário das vilas, são lugares alternativos ao universo sagrado, representativos de uma religiosidade popular não institucional. Em torno das ermitas expressam-se crenças e sentimentos, por meio de atos de devoção, trocas de promessas e oferendas aos Santos. E ao longo do caminho até às ermidas, na missa campal e nas procissões os santos são aclamados e evocados em canções populares.

Moda da Senhora das Pazes

(…)

Vestida de branco

Milagres que fazes

De negro o teu manto

Que eu adoro tanto

Senhora das Pazes.

 

Lá na sua ermida

Lá no meio do campo

O povo delira

Ao ver-te tão gira

vestida de branco.

(autoria de Maria Rosa Campaniço, do Grupo coral feminino “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho).

Ermida da Senhora das Pazes, 2014.

Ermida de San Isidro, 2014.

Lugares de troca e de partilha: “misturam-se as vidas, misturam-se as coisas”

As romarias, como outros tipos de festas, desempenham funções religiosas e lúdicas, mas também cívicas e políticas que suscitam sentimentos de pertença e de identidade grupal, local e nacional (Homobono Martínez 2012: 43). Os ritos e os símbolos que constituem os enunciados de ambas as romarias não variam significativamente em ambos os lados da fronteira. O recebimento, os atos devocionais, a saída ao campo, o caminho, a comensalidade, a liturgia, a procissão, a música e o baile obedecem a sequências rituais comuns. Cada sequência ritual representa um evento integrado e padronizado de um sistema de interações sociais, cujo significado não pode ser entendido ou analisado separadamente das restantes componentes do sistema cultural. Trata-se, principalmente de misturas, como nos ensinou Marcel Mauss (2001). Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas, misturam-se as vidas, e as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e misturam-se. Esta mistura, como principio regulador da troca e da partilha, é expressada pelos participantes nos seguintes termos:

“(…) Este ritual de Santo Isidro com Nª Senhora das Pazes é único, é difícil de explicar, porque ali não há idades, não há raças, não há nacionalidades, há uma entrega, uma dedicação, uma união” (Lita,  Comissão de Festas, Abril de 2014).

“(…) Es una cosa que me movió desde chiquitita. Dicen las sevillanas que San Isidro es novio de la Virgen de las Paces (riso) enamorado de la Virgen de las Paces. Es un encuentro entre dos países,  y una amistad bonita entre dos países, entre Rosal e Ficalho  (Glória Charca, natural de Rosal, Maio de 2014).

“(…) Es una relación transfronteriza muy bonita, algo nuevo que antiguamente y históricamente no se sentía, era todo lo contrario, era bélico, y ahora es Paz, amistad y armonía (Juan António Fuentes, natural de Huelva, Maio de 2014).

“(…) Acho que não há fronteiras, acho que há uma ligação muito humana, tem a ver com a Humanidade, isto devia reverter era para tudo, não haver guerras, diferenças, distinções de raças” (João, Comissão de Festas, Abril de 2014).

“Es una manera de unir dos pueblos, tenemos hablas distintas, pero vivimos la fiesta igual” (Maria Isabel García, natural de Rosal, Maio de 2014).

Romaria da Senhora das Pazes, 2014.

Romaria de San Isidro, 2014.

 Representações sociais das festas e seus rituais

No tempo ordinário da vida quotidiana o sentido de lugar funciona pela agregação de pessoas que constroem e articulam referentes identitários em termos de pertença a um lugar particular, estabelecido mediante a oposição a outros lugares representados como alheios. No tempo excecional festivo o sentido de lugar dilata-se para integrar elementos simbólicos de grupos distintivos num coletivo unificador. A resignificação dos lugares, idealizados, reinventados e atualizados, permanecem “afetivamente” ligados à memória coletiva, como herança cultural de comunidades rurais e raianas. As representações sociais das festas e seus rituais, combinam dialeticamente a resistência ativa de afrontamento ao Estado e à Igreja, “nos seus esforços reguladores, de captura e domesticação sempre imperfeita” (Sanchis, 1983: 374). Nesta medida, as festas populares refletem as próprias vidas das pessoas, atravessadas por tensões e ambiguidades, repletas de idealizações entre um passado enaltecido e um presente gerador de sentidos, inspirador de atividades coletivas, de emoção globalizante, de comunicação e de participação, que aspira a um futuro de igualdade e fraternidade.

Referências bibliográficas

Augé, Marc. (1992) 2006. Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora.

Boissevain, Jeremy (dir.). 1992. Revitalizing European Rituals. London: Routledge.

Cairo, Heriberto (org.). 2018. Rayanos y Forasteros: Fronterización e identidades en el Limite Hispano-Portugués. Madrid: Plaza y Váldes Editores.

Geertz, Clifford. 1973. The Interpretation of Cultures: Selected Essays. New York: Basic Books.

Hobsbawm, Eric y Ranger, Terence (ed.). 1983. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press.

Homobono Martínez, José Ignacio. 2012. “Dimensiones nacionalitarias de las fiestas populares: lugares, símbolos y rituales políticos en las romerías vascas”, Zainak. 35: 43-95.

Mauss, Marcel (2001). Ensaio sobre a Dádiva, Lisboa: Edições 70.

Prokkola, E.  2007. “Cross-border Regionalization and Tourism Development at the Swedish-Finnish Border: «Destination Arctic Circle»”. Scandinavian Journal of Hospitality and Tourism, 7, 2: 120-138.

Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020. URL: http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf. [Consulta: 12 de Março de 2014].

Roteiros do Baixo Guadiana. 2013. Andaluzia: Junta de Andalucia/Programa de Cooperação Transfronteiriça España−Portugal 2007-2013/UE-FEDER. URL: http://www.juntadeandalucia.es/turismoycomercio/publicaciones/143368212.pdf%5BConsulta: 12 de Março de 2014].

Sanchis, Pierre. 1983. Arraial: Festa de uma Povo As Romarias Portuguesas, Lisboa, Publicações D .  Quixote.

Zozaya Montes, Leonor. 2011. “Construcciones para una canonización: reflexiones sobre los lugares de memoria y de culto en honor a San Isidro Labrador”, Tiempos Modernos, 22.

 

Vídeos realizados no ámbito do trabalho de campo em 2014:

– “El cante y el baile en la Romería de San Isidro El Labrador”, Rosal de la Frontera (Huelva), 17 e 18 de Maio: http://www.youtube.com/watch?v=2DYucDa6-CU

– “Tamborileros «Los Bravo» en la Romería San Isidro El Labrador”, Rosal de la Frontera (Huelva), 17 e 18 de Maio: http://www.youtube.com/watch?v=3I1Wp76INMM

– “Baptismo – Romería de San Isidro El Labrador (Rosal de la Frontera – Huelva)”, 18 de Maio: https://www.youtube.com/watch?v=VtC-mWbE1qQ

– “O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)”, 26 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=tEED1kSR1Qg

– “«Os Amigos da Pinguinha» – na Festa da Senhora das Pazes” (Vila Verde de Ficalho, Baixo Alentejo): https://www.youtube.com/watch?v=rCDQqzmFDZI

– “El cante y el baile na Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 27 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=fcN8GFNormw

– “RITM’ARTES – Festa da Senhora das Pazes (Vila Verde de Ficalho – Baixo Alentejo), 25 a 27 de Abril: https://www.youtube.com/watch?v=AQmAQKOGOSs

– “Uma festa transfronteiriça – Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 25 a 27 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=SD2tyokqQFE

– “O Cante na Festa da Senhora das Pazes”, Vila Verde de Ficalho, 25 de Abril: http://www.youtube.com/watch?v=lpDUSmvVe2M

– “O tamborileiro na festa de Nossa Senhora das Pazes – Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo), 24 de Abril: https://www.youtube.com/watch?v=Ij5cigD6Zq8

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional de Estudos sobre Memórias, Sons e Textos: festas e representações, entre a subversão e a patrimonialização, organizado pelo INET-md e IHC na NOVA FCSH. Lisboa, 19 e 20 de abril de 2018.

 

As celebrações musicais na raia do Baixo Alentejo: espaços de sociabilidade e experiências partilhadas

A relação entre música e desenvolvimento deve partir de abordagens que questionem o poder e a hegemonia do capitalismo global, e o seu impacto na vida das pessoas (Harvey 2007). Atendendo os processos económicos globalizados e aos processos sociais localizados, com o enfoque na experiência e na acção colectiva (Alguacil Gómez 2005). Isto significa que o nosso olhar sobre festas e festivais como fatores de desenvolvimento turistico deve estar atento ao avanço do capitalismo e às suas implicações na cultura, através de uma abordagem que permita compreender de que forma estes fenómenos são tratados em contextos locais (Hernández-Ramírez 2015).

No caso do Alentejo a estratégia de desenvolvimento regional delineada em Bruxelas, no quadro de programação 2014-2020, está direcionada para a exploração do Património Natural e Cultural como setor económico com elevado potencial para a rentabilização dos fatores identitários, e as verbas que comparticipam a realização das festas e festivais estão inseridas neste domínio, desde que a) tenham elevado impacto em termos de projeção da imagem da região, nomeadamente internacional; b) estejam associadas ao património e à cultura; c) apresentem potencial de captação de fluxos turísticos. (Portugal2020: https://www.portugal2020.pt/Portal2020/Media/Default/Docs/Programas%20Operacionais/TEXTOS%20INTEGRAIS%20DOS%20PO/PORALENTEJO2020_alterado.pdf)

O “património cultural” (Lowenthal 1998, Prats1998) transforma-se assim num espelhamento de uma sociedade desdobrada em mercadoria e espectáculo que é necessário “atualizar”, para lhe conferir um “poder de contemporaneidade”, de forma a corresponder às exigências do mercado, segundo duas perspectivas complementares: a globalização cultural e a heterogeneidade cultural por referência a identidades localizadas (Jeudy 2008).

Neste contexto, as festas e festivais transformaram-se num campo de estudo para investigadores de diversas áreas científicas, pelo universalismo da celebração, pela dimensão social das experiências festivas e como fator de desenvolvimento económico (Getz 2010, Gibson e Connell 2012, Jepson e Clark 2015.). Donald Getz (2010) diz-nos que os estudos estão pautados por três grandes discursos, ou linhas estruturadoras de produção de conhecimento. O discurso da antropologia e da sociologia, referente a papéis, significados e impactos das festas nas comunidades. O discurso dominado pela avaliação do impacto económico no turismo, ao nível do planeamento, do marketing e das motivações como destino turístico, que originou uma considerável reflexão e teoria crítica pelos festivais serem claramente mercantilizados pelo turismo. E o discurso empresarial, focado em elementos específicos da gestão de eventos, incluindo recursos humanos, riscos, logística e marketing, que ignora as necessidades fundamentais para a celebração e muitas das razões sociais e culturais que justificam o surgimento de novas festividades e eventos culturais.

Sem Título

A raia do Baixo Alentejo é uma das zonas da Península Ibérica com maiores índices de desertificação e de envelhecimento da população (ver Resumen del Diagnóstico Socioeconómico de la Zona de Cooperación 2013. Programa de Cooperación Transfronteriza España-Portugal 2014-2020 http://www.poctep.eu/sites/default/files/documentos/1420/Resumen_Diagnostico_14_10_13_ES.pdf). A reprodução da maior parte das famílias já não passa pela agricultura, mas por atividades terciárias, trabalhos precários, pensões de reforma e subsídios de inserção social. Os municípios, como principais empregadores, debatem-se com falta de meios para responder a problemas estruturais, como o desemprego e a desertificação territorial (ver A ANMP e a atual situação do poder local em Portugal. 2012. Coimbra: Associação Nacional de Municípios Portugueses. Disponível em http://www.anmp.pt/files/dfin/2012/ANMP3201205PT.pdf). Ao abandono rural corresponde o desaparecimento da memória coletiva dos grupos, a que os poderes políticos contrapõem uma memória social patrimonializada e turistificada ao serviço do desenvolvimento económico da região.

 

Alguns dados estatísticos dos municipios raianos do Baixo Alentejo (2013)

Municipios
Barrancos Mértola Moura Serpa
Superficie/ km2 168,4 km² 1.292,9 km2 958,5 km2 1.105,6 km2
População residente 1.775 6.909 14.717 15.421
Densidade por km2 10,5% 5,3% 15,4% 13,9%
Desempregados inscritos no Centro de Emprego (% da pop.) 15,1,% 9,6% 16,8% 12,2%
Pensões de reformas (%) 46,9% 58,7% 49,1% 48,3%
Beneficiarios de RSI (%) 5,2% 2,6% 12,4% 6,3%
Despesas municipais na cultura e desporto (%) 11,3% 7,0% 12,9% 22,6%
Nº de Espectáculos 0 133 100 123
Nº de Recintos culturais 1 1 0 3

Fonte: PORDATA

Na última década assistimos à invenção de novas festas e festivais organizadas pelos municípios, baseadas em produtos e em particularidades culturais destinadas a atrair forasteiros e a competir com outros locais, por meio de atributos identitários. Nestas festas os municípios investem todos os seus recursos materiais e humanos, envolvem os produtores, as associações culturais, os grupos musicais e criam trabalhos temporários, que permitem a inclusão social e a cooperação entre os membros das comunidades.

ExpoBarrancos 2015

Aspecto da IX edição da ExpoBarrancos (Barrancos), 2015

Factor, 2016

Aspecto do Festival de Artes e Oficios da Raia – FATOR, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2016

Deste grupo de festas destaca-se pela projecção internacional o Festival Islâmico de Mértola e o Encontro de Culturas de Serpa. O Festival Islâmico de Mértola (Maio-bienal) foi criado em 2001 para celebrar a herança histórica e cultural islâmica da vila, segundo uma política “de encontro de culturas”, que mistura sonoridades alentejanas e do Magrebe numa diversificada programação musical. Durante quatro dias as ruas da zona histórica transformam-se num mercado árabe, que apela à diversidade cultural. Para além de exposições, conferências e workshops que dinamizam os equipamentos municipais e as associações culturais locais (ver http://www.festivalislamicodemertola.com/sobre-o-festival/apresentacao).

O Encontro de Culturas de Serpa foi criado em 2002, por um município que preconiza “a cultura como veículo de desenvolvimento sustentável para o concelho” e foi inicialmente designado por Encontros Luso-Brasileiros de Arte e Cultura. O espetáculo “EnRede” abre o evento, com a atuação de grupos musicais da Espanha, Brasil, Cabo Verde e América Latina, integrados numa rede cultural ibérico-americana. O dia 10 de Junho foi designado pelo “Dia do Cante” para promover os mais de 15 grupos corais alentejanos do concelho. O programa engloba ainda animações de rua, workshops, exposições e debates focalizados nas “indústrias culturais”, e na criação de redes de intercâmbio entre promotores e agentes culturais nacionais e internacionais (ver http://www.cm-serpa.pt/artigos.asp?id=1177).

Localmente as festas apresentam-nos diferentes organizadores, motivações, intencionalidades, públicos, recursos e géneros musicais, e devem ser interpretadas nos seus múltiplos significados. Do conjunto de festividades destacam-se as celebrações musicais de fruição local, organizadas por grupos corais alentejanos e por grupos de baile de sevilhanas, que representam experiências coletivas baseadas na convivialidade e na reciprocidade.

Ficalho 2015

Encontro de Grupos Corais, organizado pelas “Flores do Chança” de Vila Verde de Ficalho, 2015

Os Encontros de grupos corais são atualmente integrados no Plano de Salvaguarda do Cante, e na relação deste com o desenvolvimento local, mas continuam a depender do trabalho voluntário de homens e mulheres que procuram os apoios financeiros necessários à sua concretização junto de entidades públicas e privadas. Os grupos convidados representam uma rede de relações construídas ao longo do tempo, segundo uma lógica de reciprocidade que marca a cultura dos grupos corais alentejanos. Isto significa que os grupos convidados têm a obrigação de retribuir o convite nas suas localidades, assim como as oferendas que recebem pela participação graciosa, segundo a “teoria da dádiva” de Marcel Mauss (2001 passin), fundamentada na obrigação de dar, de receber, e de retribuir.

grupos corais ficalho 2015

Grupo coral “Flores do Chança”, Vila Verde de Ficalho (Serpa), 2015

A mesma lógica de reciprocidade está presente nos espectáculos “Noche Flamenca”, organizados por grupos de sevilhanas nas suas localidades, para festejarem o término do ano escolar e exibirem as competências técnicas e artísticas adquiridas. A organização é coordenada pela professora Ana Castilla, natural de Cortegana (Huelva) e resulta da cooperação entre diversos coletivos (grupos familiares, associações culturais e autarquias) que participam na construção de geografias emocionais e atraem um público muito diversificado. Em todos os espectáculos participam grupos provenientes de ambos os lados da fronteira, para mostrarem que a música e a dança representam um trabalho experimental que engloba o processo estético e criativo com o processo social de interação entre portugueses e espanhóis.

rede

O trabalho e a iniciativa dos grupos corais e dos grupos de baile estabelecem uma clara relação entre música e desenvolvimento, e representam um “espirito empreendedor” que não se inscreve na lógica empresarial. Antes pelo contrário, as celebrações musicais resistem à dinâmica da globalização, baseada na extensão da lógica mercantil às práticas da cultura, através uma dinâmica cultural oposta e complementar de afirmação de práticas musicais baseadas na convivialidade, na cooperação e na reciprocidade.

noche flamenca 2014

“Noche Flamenca” de Santo Aleixo da Restauração (Moura), 2014.

A etnografia mostra-nos que as festas organizadas pelos municípios rentabilizam os meios materiais e humanos disponíveis e estão orientadas para a inclusão social e a cooperação, através da criação de trabalhos temporários e da valorização de práticas da cultura, como marcadores da memória coletiva. As festas comemoram as identidades e os valores das comunidades e assinalam um tempo de utopia, de alegria e abundância, pela partilha de experiências, de bens e de afectos. Num contexto rural economicamente desarticulado os impactos das festas são muito diversificados, embora exista um denominador comum na predisposição colectiva para se viver a festa como um tempo de esperança contra as incertezas do futuro. A “sociabilidade festiva” como experiência colectiva é fundamental à transmissão de valores e de saberes, e como ponto de convergência de pessoas em torno de atividades musicais significantes, que resistem aos modelos de turistificação e mercantilização da cultura.

noche flamenca Barrancos, 2015

“Noche Flamenca” de Barrancos, 2015

Num contexto rural e fronteiriço as práticas musicais entrelaçam a dimensão micro das relações de vizinhança com a dimensão macro de uma sociedade globalizada. As celebrações musicais dos grupos corais e dos grupos de sevilhanas promovem uma imagem do lugar para o exterior, como imagem de marca de atributos culturais que não dissociam a música de uma cultura baseada na convivialidade e na reciprocidade, como valor de pertença a um “lugar social” por oposição aos “não lugares”(Augé 2005). Um lugar social individualizado no espaço e no tempo, pertencente a um mundo global, que permite o desenvolvimento da criatividade e a construção de utopias que atribuem sentido e significado à vida de pessoas que participam na construção de futuros possíveis.

 

Referências bibliográficas:

Alguacil Gómez, Julio. 2005. “Los desafíos del nuevo poder local: la participación como estrategia relacional en el gobierno local”. Polis (12): 2-17.

Aramberri, Julio. 2011. Turismo de masas y modernidad. Un enfoque sociológico. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas.

Augé, Marc. 2005. Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora.

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Duvignaud, Jean. 1984. Fêtes et civilizations. Paris, Scarabée & Compagnie, 2ème édition.

Getz, Donald. 2010. “The nature and scope of festival studies”, International Journal of Event Management Research, Volume 5, Number 1.

Gibson, Chris. y Connell, John. (eds.). 2012. Music, Festivals and Regional Development in Australia. Ashgate.

Harvey,  David. 2007. Breve historia del neoliberalismo, AKAL.

Hernández-Ramírez, Javier. 2015. “Turismo de base local en la globalización”. Revista Andaluza de Antropología (8): 1-18.

Jeudy, Henry-Pierre. 2008. La machinerie patrimoniale. Paris: Circé.

Jepson, Allan. y Clark, Alan. (eds.). 2015. Exploring Community Festivals and Events. London/New York: Routledge.

Lowenthal, David. 1998. The heritage cruzade and the spoils of history. Cambridge: Cambridge University Press.

Mauss, Marcel. 2001. Ensaio Sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70.

Prats, Llorenç. 1998. “El concepto de patrimonio cultural”. Política y Sociedad (27): 63-76.

 

(Comunicação apresentada ENIM 2016- VI Encontro Nacional de Investigação em Música, que se realizou na Universidade de Aveiro de 3 a 5 de novembro de 2016. Programa: http://www.spimusica.pt/wp-content/uploads/2016/05/Programa-ENIM-2016.pdf)

 

O Cante na raia do Baixo Alentejo – passado, presente e horizontes de expectativa

No filme “Alentejo, Alentejo”, de Sérgio Tréfaut, o mestre Bento Maria Adega, cantador de Safara, diz-nos que “foram cigarras e pássaros que ensinaram os alentejanos a cantar”. No entanto, os estudiosos atribuem diversas origens ao Cante Alentejano, que entrelaçam influências culturais cristãs, judaicas e árabes. Sobre as terras alentejanas escreveu Luís de Freitas Branco: “a região alentejana, de tão gloriosas tradições musicais, parece justificar, na tendência polifónica do seu povo, a teoria geralmente aceite de que a extraordinária florescência do estilo a cappella, em volta de Évora, não fosse obra do acaso” (Freitas Branco, 1929: 24). Armando Leça ao referir-se à imensa planície que é o Baixo Alentejo e aos seus magníficos corais escreveu: “a paisagem do Baixo Alentejo sem corais é como catedral gigantesca sem as sonoridades do órgão” (Leça, s/d: 32). Rodney Gallop (1960) também manifestava um entusiástico fascínio pelo Cante, afirmando: “na pequena região de entre Beja e a raia, que compreende Serpa, Moura e alguns sítios mais humildes, conservou-se uma tradição de cantar a três partes, que não tem paralelo na minha experiência de qualquer país” (Gallop, 1960: 30). No entanto, as primeiras referências documentais ao Cante remetem para o final do século XIX, início do século XX, e a denominação mais antiga e usual era de “Canto às Vozes”. João Ranita Nazaré diz-nos que a primeira alusão aos cantares no Baixo Alentejo data de 1886, da autoria de Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho (1837-1903), num livro de contos em que descreve alguns costumes populares e onde o Cante surge ligado à dança: “ficavam horas no baile, andando à roda n’um passo vagaroso, cantando em coro as modas lentas, entoadas em terceiras, prolongadas em sonoridades singulares e doces” (Marchi, 2010: 8). Na revista A Tradição (1899-1904) encontramos um conjunto de textos de Manuel Dias Nunes e um cancioneiro com 60 cantigas (com pauta), que manifestam o interesse das elites intelectuais pelo Cante e outras práticas musicais associadas à cultura popular. A César das Neves e Gualdino de Campos devem-se os três volumes do Cancioneiro de Musicas Populares (1893-1899) contendo letra e música de canções, e a António Tomás Pires os quatro volumes que compõem os Cantos Populares Portugueses (1902-1910) recolhidos da tradição oral, contendo canções provenientes das diversas províncias portuguesas, com predomínio do Alentejo. Na Amareleja, terra do Padre António Marvão, musicólogo e folclorista autor do Cancioneiro Alentejano (1946), encontramos na Sociedade Recreativa Amarelejense uma foto de um grupo de cantadores, datada de 1887, que serve para legitimar a tradição do Cante junto dos seus associados e inspirar o actual grupo coral, formado em 2007.

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Em 1902, Manuel Dias Nunes fala-nos dos cantadores: “essa pobre e sofredora gente, que leva a vida inteira a moirejar, disseminada por montes e vales, à chuva, ao sol, ao frio, encontra no canto coral como que um doce lenitivo à rudeza do labor que a subjuga desde o berço até à sepultura.” (“Costumes da minha terra ― os descantes”, in A Tradição, Ano IV, p. 8). José Alberto Sardinha (2001) descreve-nos a prática do cante e da dança nas aldeias alentejanas nos seguintes termos:

“As moças cantavam muito bem, frequentemente sozinhas, fazendo a polifonia tradicional do canto alentejano. Ali, a tradição não tinha senão uma regra fixa: no alto (terceira superior à melodia) só cantava uma voz, fosse masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam as mulheres só, como os homens, como todos em conjunto. Não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar e os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar” (Sardinha, 2001: 29).

Na década de 1930, com o início do processo de folclorização, cujo objectivo era representar a tradição duma localidade, duma região ou da Nação, assistimos à mobilização de mediadores, pessoas letradas que exerciam influência pessoal ao nível local, regional e nacional, e intervinham na selecção e adaptação de repertórios, na organização de grupos folclóricos e de eventos (Castelo-Branco & Branco, 2003). No processo de adequação do Cante ao contexto político e cultural do Estado Novo, as casas do povo foram o espaço social privilegiado para a criação e emblematização dos grupos corais, como representações locais da Nação. A partir de 1933 o Estado Novo controla todas as formas de participação social para as dominar ideologicamente, proibindo as manifestações culturais dissonantes, com a intenção de criar corpos dóceis, usando a terminologia de Foucault. Os estatutos da FNAT (1935) determinavam uma educação estética de exaltação do rural, assente nos pilares do folclore e da etnografia, impondo um “modelo nacionalista-ruralista-tradicionalista da cultura popular”, com o objectivo de legitimar o regime e estabelecer um consenso social em torno de um conjunto de valores, imagens e práticas culturais (Torgal, 1982). As elites locais alentejanas participaram deste processo, e contribuíram para a “domesticação” e divulgação dos grupos corais, organizando espectáculos na capital. No primeiro espectáculo organizado pelo Grémio Alentejano (Casa do Alentejo), a 23 de Março de 1937, no Teatro São Luís em Lisboa, participaram os grupos corais de Mértola, Vidigueira, Aldeia Nova de São Bento, Vila Verde de Ficalho, e a orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco (1890-1955). Francisco Valente Machado (1980) afirma ter sido “a primeira vez que cantadores alentejanos se exibiram na capital do País”, e descreve como se “deslocaram em passos lentos e cadenciados pelo Chiado abaixo até ao Rossio, entoando maravilhosos cantos da sua província, como se se encontrassem nas terras das suas naturalidades”. Para assinalar a participação no evento, o cantador António Soares, do grupo coral de Vila Verde Ficalho, versejou: “Esta noite sonhei eu /Um sonho muito feliz/ Sonhei que estava cantando / No Teatro São Luís” (Machado, 1980: 279).

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Sarau na Casa do Alentejo em 1937

Entre 1939 e 1940, o musicólogo Armando Leça realizou o primeiro levantamento “músico-popular feito em Portugal através do registo mecânico de som”, de cantares e danças populares. Tratava-se de uma encomenda da Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade e o terceiro da Restauração. O objectivo era organizar uma compilação “das mais características e genuínas músicas e canções populares existentes em todas as províncias do continente português” (Sardinha, 1992). Armando Leça esteve no Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve. No Baixo Alentejo foram gravados grupos de Moura, Serpa, Aldeia Nova de São Bento, Baleizão, Aljustrel, Castro Verde Mértola e Vila Verde de Ficalho. O registo de som em fita magnética esteve a cargo da Emissora Nacional, mas a publicação desta recolha pioneira, prevista pela Comissão dos Centenários, não chegou a realizar-se (Sardinha, 1992). No entanto, a 30 de Novembro de 1940 Armando Leça proferiu uma conferência sobre o seu trabalho, intitulada: “Da Música Popular do Baixo Alentejo”, na Casa do Alentejo, durante a qual se exibiu o grupo de cantadores de Vila Verde de Ficalho.

armando leça

O Cante estava profundamente ligado à vida dos trabalhadores rurais, ao trabalho agrícola, ao convívio nas tabernas, e às festas, animando os bailes ao som da viola campaniça, da harmónica ou do adufe, que serviam para imprimir ritmo (Marvão, 1955; Machado, 1980). Joaquim Soares, presidente da direcção da “Associação Moda”, recorda que o Cante era entoado por homens e mulheres, que cantavam no campo, a caminho de casa, nas festas, e que hoje o Cante é associado sobretudo aos homens, porque “era nas tabernas, em torno do vinho e do tremoço, que se organizavam os grupos, e aqui não entravam as mulheres. Falamos dos anos 40, 50 do século XX. (…) Hoje há menos convívio. Hoje os grupos marcam ensaios. Antes cantavam a trabalhar e no lazer e assim se organizavam” (ver artigo “Associação Moda – O cante alentejano é «melodia que transmite o sentimento de um povo»” em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=4611). No mesmo sentido falaram os cantadores e cantadeiras com quem conversei em Santo Aleixo da Restauração, em Barrancos, na Amareleja e em Vila Verde de Ficalho, quando evocam o Cante como expressão de sentimentos e experiências de vida.

O Cante Alentejano é caracterizado como uma polifonia simples, a duas vozes paralelas, à terceira superior, formado por um coro, sem instrumentos, de homens, de mulheres ou misto, que cantam estruturas poéticas denominadas por “modas”. Segundo Manuel Joaquim Delgado (1955) esta denominação provém do facto destas canções se divulgarem de boca em boca, entre a população rural alentejana, caindo assim na “moda” (1955: 7). As “modas” cantam a terra, o trabalho, os acontecimentos e os sentimentos de homens e mulheres, no sentido do amor, da saudade, da zombaria e da crítica social. As modas são formadas por estrofes poéticas e interpretadas segundo um cânone estabelecido: um solista, denominado como ponto, inicia o canto, cantando uma quadra solta, de seguida um outro, designado por alto, substitui-o, cantando o primeiro verso da moda, e de seguida todo o coro se lhes junta para cantar o restante. O padre António Marvão (1955) diz-nos que podemos dividir o cante alentejano em três tipos de música: as modas lentas, as modas coreográficas e os cantes religiosos, como os “Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo” publicados nesta página (https://culturaexpressiva.wordpress.com/2015/01/24/cantos-populares-de-natividade-das-janeiras-e-dos-reis-na-raia-do-baixo-alentejo/)
Nos finais da década de 1950, as transformações na agricultura e os subsequentes fluxos migratórios dos trabalhadores rurais para as cidades, na procura de melhores condições de vida, altera a geografia emocional do Cante, como espaço de interação social entre as pessoas e os lugares. No contexto da Diáspora formam-se os primeiros grupos corais nos arredores de Lisboa, enquanto os grupos locais perdem gradualmente os seus cantadores. No pós 25 de Abril os grupos corais alentejanos são resignificados e participam em comícios, manifestações e reivindicações dos trabalhadores rurais, assumindo um papel de intervenção política. Assiste-se à formação de novos grupos nos quais as mulheres passam a assumir um papel relevante, e à criação de “modas” que denunciam a exploração, a fome, a repressão nos campos e as legitimas aspirações da Reforma Agrária. A partir da década de 1980, com o fim do processo revolucionário, abandona-se as temáticas de intervenção politica e social, recuperam-se os repertórios tradicionais e vive-se um período de indefinição do Cante, que conduz ao desaparecimento e envelhecimento dos grupos. Na década de 1990 assiste-se a uma renovação do Cante, com o surgimento de novos grupos na Diáspora e de grupos femininos locais, que teimam em manter e defender a sua identidade cultural.

No ano 2000 foi criada a MODA – Associação do Cante Alentejano, para “divulgar, defender e dignificar o canto alentejano”, congregando uma parte significativa dos grupos corais em actividade no Alentejo e nas regiões de Lisboa e Setúbal. Numa entrevista à agência Lusa, Joaquim Soares afirmava que “o envelhecimento dos grupos corais era um dos grandes problemas do Cante”, precisando que a maioria dos grupos associados da Moda “eram constituídos sobretudo por homens entre os 50 e os 70 anos”. Joaquim Soares defendia o ensino das modas nas escolas e nos conservatórios da região, para que as novas gerações aprendessem “o cantar típico da sua terra como aprendem outras músicas” (ver artigo em: http://expresso.sapo.pt/cante-alentejano-sobrevivencia-depende-da-convivencia-dos-dos-mais-velhos-com-geracao-mp3=f533813#ixzz2aYbKDQjM).
Em 2012, José Francisco Colaço Guerreiro, num artigo publicado no Correio do Alentejo afirmava que “o cante hoje deve ser tido como um produto cultural, um património de inestimável valor, pertença colectiva de um povo e de uma região e não mais uma manifestação etnográfica específica do proletariado rural” (ver artigo em: http://www.correioalentejo.com/?opiniao=1157&page_id=56). Para o músico Janita Salomé “é no território de laboratório, experimentando coisas novas, nomeadamente instrumentos, que o cante deve evoluir, sem perder a sua matriz”, para isso, considera que “é essencial captar gente nova para o cante” (ver artigo em: http://www.cafeportugal.pt/pages/noticias_artigo.aspx?id=5255&dossier=http%3A%2F%2Fwww.cafeportugal.pt%2Fpages%2Fdossier_artigo.aspx%3Fid%3D6038&did=6038). Neste sentido, foram implementados dois projectos de ensino do Cante Alentejano, um em Serpa e outro na Damaia, para além de novos projectos que têm surgido em Barrancos e na Amareleja, motivados pela candidatura e reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade. Por outro lado, assiste-se ao surgimento de novos grupos corais, constituídos por jovens com formação musical, oriundos de contextos urbanos, que parecem dar resposta às problemáticas em torno da continuidade do Cante. O processo de candidatura, ao mobilizar autarquias, associações, agentes culturais e grupos corais também criou novas expectativas nos cantadores. Todavia, continuam a debater-se com os problemas de sempre, a falta de recursos financeiros e de reconhecimento como grupos musicais, no contexto da indústria discográfica e do espectáculo.

 

Bibliografia:
DELGADO, Manuel Joaquim (1955) Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo, vol. II, Lisboa.
FREITAS BRANCO, Luís de (1929) A Música em Portugal, [brochura da] «Exposição Portuguesa em Sevilha», Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa.
GALLOP, Rodney (1960) Cantares do Povo Português: estudo critico, recolha e comentário, Lisboa, Instituto de Alta Cultura.
GIACOMETTI, Michel (1981) Cancioneiro popular português, (com a colaboração de Fernando Lopes Graça), Lisboa, Círculo de Leitores.
LEÇA, Armando (s/d) Música Popular Portuguesa, Lisboa.
LOPES-GRAÇA, Fernando (1991) A Canção Popular Portuguesa, Lisboa, Caminho.
MACHADO, Francisco Valente (1980) Monografia de Vila Verde de Ficalho. Vila Verde de Ficalho: Biblioteca-Museu.
MARCHI, Lia, Piedade, Celina da, e Manuel Morais (2010) Caderno de Danças do Alentejo, vol.1, Pédexumbo.
MARVÃO, António (1955) O Cancioneiro Alentejano: Corais majestosos, coreográficos e religiosos do Baixo Alentejo, Braga: Editorial Franciscana.
NAZARÉ, João Ranita (1979) Música tradicional portuguesa: cantares do Baixo Alentejo, Lisboa: Instituto da Cultura Portuguesa.
NEVES, César & CAMPOS, Gualdino de (1893-1899) Cancioneiro de Musicas Populares, contendo letra e música de canções, serenatas, chulas, danças, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hinos nacionais, cantos patrióticos, cânticos religiosos de origem popular, cânticos litúrgicos popularizados, canções políticas, cantilenas, cantos marítimos, etc., e cançonetas estrangeiras vulgarizadas em Portugal, Vol.1, 2 e 3, Porto, Tipografia Ocidental. Consultável em: http://purl.pt/742
SARDINHA, José Alberto (1992) “Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular realizado em Portugal”, em: http://run.unl.pt/handle/10362/6737
– (2001) A Viola Campaniça: O Outro Alentejo, Sons da Tradição, vol.1, Tradisom.
TORGAL, Luís Reis & Carvalho Homem, Amadeu de (1982) “Ideologia salazarista e «cultura popular» – análise da biblioteca de uma casa do povo”, Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), 3.°4.°5.°, 1437-1464.

Revista A Tradição (criada em 1899 por Ladislau Piçarra e Manuel Dias Nunes). Vol.1 consultável em: http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up

Cantos populares de Natividade, das Janeiras e dos Reis – na raia do Baixo Alentejo

No reinado de D. João V, mais precisamente em 1716, o costume popular de cantar vilancicos por altura das festas do Natal, dos Reis e da Imaculada Conceição de Maria foi interrompido definitivamente, por motivo da adoção do cerimonial litúrgico romano, objetivo muito ambicionado pelo Rei Magnânimo (Lopes, 2014: 84). (…) Na Capela Real, os primeiros vilancicos a incorporar secções de tipo italiano localizam-se no folheto para a Festa da Imaculada Conceição de 1709, mas é de salientar que estas secções começam a escutar-se em Lisboa quatro anos antes, associadas à Festa de Santa Cecília, comemorada na Igreja Paroquial de Santa Justa (p. 86).

Michel de Certau (1989) diz-nos que no séc. XVIII se apoderou da aristocracia esclarecida “uma espécie de entusiasmo pelo popular”, uma «rusticofilia», como reverso de um medo radicado na cidade “perigosa e geradora de corrupção”, que justifica o regresso a uma “pureza original dos campos, símbolo das virtudes conservadas desde os tempos mais remotos”. No entanto, o camponês já está civilizado pelos costumes e a moral cristã, que produziram “súbditos fiéis, dóceis e laboriosos” (1989: 52). O regresso a um povo ao qual se cortou a palavra para melhor o domesticar, sustenta a idealização do popular sob a forma de um monólogo. A linguagem da religião poderia ser o último recurso de uma cultura que já não se podia exprimir, e que tinha de se calar, ou mascarar, para fazer ouvir uma ordem cultural diferente. Aliás, já que o povo não falava, podia pelo menos cantar, e “o prazer experimentado pela auréola «popular», que cobre melodias inocentes, está precisamente na base de uma concepção elitista da cultura” (1989: 53).
Em Barrancos (Baixo Alentejo), na véspera de Natal, ainda se cantam villancicos de Navidad, do cancioneiro tradicional da Extremadura, acompanhados pela zambomba. Na Extremadura os villancicos são acompanhados por instrumentos de corda, como a bandurra, a guitarra e pelo acordéon. Todavia, na Andalucía, os villancicos e cânticos populares de Navidad são acompanhadas pela zambomba, instrumento de percussão, que em Portugal também é designado por sarronca. Neste vídeo, Manuel Torrado e Maria dos Remédios Guerreiro recordam alguns versos de vilancicos que cantavam frente à igreja, ao calor do lume que arde na Praça.

Zambobita, zambombita
Yo te tengo que romper
A la puerta de mi novia
No quisiste tocar bien.
(…)
Villancicos De Navidad – La Virgen va Caminando
La Virgen va caminando
por una montaña oscura
y al vuelo de una perdiz
se la ha espantado la mula.
(…)

Villancicos De Navidad – Los Peces En El Río
(…)
Pero mira como beben
los peces en el río,
pero mira como beben
por ver al Dios nacido.
Beben y beben y vuelven a beber,
los peces en el río
por ver a Dios nacer.

Em Vila Verde de Ficalho, Michel Giacometti gravou um grupo de homens, na sua maioria trabalhadores rurais, dirigido por Mestre Bento, barbeiro de profissão, cantando a “Moda ao Menino”, do reportório tradicional de Ficalho, um dos mais valiosos temas da música coral alentejana. Michel Giacometti considerava que o Baixo Alentejo era, talvez, das regiões mais pródigas do país em cantares alusivos ao nascimento do Menino, e assinalava: “o homem sul alentejano, por razões a que a sua condição social e económica talvez não seja estranha, canta modas cuja linha severa não impede uma certa ternura ao Menino nascido em «tão pobres agasalhos, que até parece impossível» como dirá um dos nossos amigos de Ficalho”. (“O Povo que canta”, 11.º Programa, emitido a 27 de Dezembro de 1971)

Os trabalhadores rurais sempre entoaram cantos religiosos na quadra pós-natalícia, (Janeiras, Reis), como forma de pedir esmola à porta dos ricos. O canto “Oração das Almas”, interpretado por um grupo de cantadores do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração, integra-se no repertório dos cantos de Janeiras e Reis registados por Michel Giacometti em 1971. O canto de Janeiras, ou canto de peditório, prática musical encontrada em numerosas povoações rurais de norte a sul do país, era geralmente cantado às portas das pessoas mais abastadas, na noite de 31 de Dezembro. Como recordava o Padre António Marvão (1956), “quem não se lembra ainda, quando criança, ou mesmo depois de grande, de lhe chegarem à porta, de noite, na paz abençoada da lareira grupos de cantadores, às vezes mistos, a cantar os Reis ou as Janeiras!? Que unção espiritual despertavam em nossa alma esses cantos religiosos, elevando o nosso pensamento para o Alto, para o Céu, onde mora a Felicidade e a Paz! No silêncio impressionante da noite fria, o nosso coração enchia-se de compaixão pelos pobrezinhos, que, nas pessoas dos cantadores, eram contemplados com figos, passas, carne de porco, pão e até dinheiro.” (Marvão 1956: 13)

José Patrício, cantador do Grupo Coral Masculino da Casa do Povo da Amareleja (Baixo Alentejo) recorda-nos como cantava os Reis na Amareleja: “Comecei a cantar os Reis tinha aí os meus oito ou dez anos. Andava com um grupo de miúdos da mesma idade, e a gente ia de porta em porta a cantar os Reis para nos darem alguma coisa. Davam-nos umas castanhas, uns marmelos, ou uns dinheiritos que depois a gente repartia por todos. Íamos à casa dos ricos, que esses versos eram dedicados aos ricos, à casa do Dr. Zé, do senhor Eugénio Barreto, do senhor Tonico Luís, do senhor Adolfo, e também íamos àquelas casas mais pobres, davam-nos uns figuinhos e outras coisas assim. Era muito divertido. Hoje já não há esse divertimento como havia antigamente, agora os rapazes já não sabem cantar os Reis” (José Patrício, 71 anos, agricultor).

Na Amareleja, os cantadores do Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense, formado em 2007, por 28 elementos com idades compreendidas entre os 32 e os 80 anos, dirigidos pelo mestre António Castelhano Miguel, ensaiam a “Oração das Almas”, canto que na noite de 5 para 6 de Janeiro de 2015 entoaram pelas ruas da vila.

À porta de uma Alma Santa
Bate um Deus, a toda a hora
Alma Santa, respondeu
Ó meu Deus, que quereis agora?
Quero-te a ti, Alma Santa
Lá para, o Reino da Glória.

Fontes bibliográficas:
“Vilancicos que se cantaram na Paroquial de Santa Justa nas matinas e festa da Santa Cecília, 1705”, em: http://purl.pt/…/424812_PD…/424812_0000_1-24_t24-C-R0150.pdf

Certeau, Michel de & Julia, Dominique (1989) “A beleza do morto: o conceito de «cultura popular». In A Invenção da Sociedade, Lisboa: Difel pp.49-59.

Lopes, Rui Cabral (2014) “O Villancico no reinado de D. João V: Entre a persistência do costume e a mudança de paradigmas litúrgico-musicais”. Artigo completo disponível em: http://rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/view/27/27

Marvão, António, 1956, O Alentejo Canta. Conferência proferida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Beja, no dia 17 de Junho de 1956, Braga, Editorial Franciscana.

Revel, Jacques (1989) A Invenção da Sociedade, Lisboa: Difel.

Internet:
Jacinto Saramago reuniu algumas cantigas de Navidad para zambomba que podem ser consultadas aqui: http://estadodebarrancos.blogspot.pt/…/cantigas-do-natal-ba…

Os tamborileiros do Baixo Alentejo – memórias e práticas da cultura

As fontes históricas mostram-nos a presença do tamborileiro, desde a Idade Média, em contextos festivos e cerimoniais. No Baixo Alentejo, as funções do tamborileiro estão vinculadas às festas patronais e aos peditórios. No entanto, a partir da segunda metade do século XX, a prática musical do tamborileiro sofreu um significativo decréscimo quantitativo e qualitativo, comparativamente a décadas anteriores. Na revista A Tradição (1899-1900) (http://www.archive.org/stream/tradio12lisbuoft#page/n7/mode/2up) encontramos artigos de Dias Nunes e A. de Mello Breyner dedicados ao tamborileiro, designando-o como “o homem que toca tamboril e gaita em todas as festas religiosas de arraial (cirios)” (1982: 71-72). A diversidade do repertório, associado aos peditórios, às procissões e às danças nos arraiais, mereceu a transcrição para partitura do músico e compositor Manuel de Jesus Gentil-Homem Valladas.

Partituras e foto de um tamborileiro publicadas na revista “A Tradição”, vol. II, 1900

Partituras e foto de um tamborileiro publicadas na revista “A Tradição”, vol. II, 1900

Em Portugal, o conjunto é encontrado nas Terras de Miranda, Trás-os-Montes, e na raia do Baixo Alentejo. No Alentejo a flauta do tamborileiro tem três furos e subordina-se aos princípios acústicos comuns a instrumentos idênticos, usados na Europa na Idade Média. Anthony Baines (1957) em Woodwind Instruments and their History diz-nos que “as notas fundamentais da flauta de tamborileiro podem-se tocar, mas não são muito usadas. A escala começa uma oitava acima, com o 2.º harmónico e continua, por intensidade de sopro, pelo 3.º, 4.º e 5.º harmónicos e mesmo mais. Neste instrumento, o intervalo maior entre dois registos é de uma quinta, o 2.º para o 3.º harmónico, pelo que os três furos são suficientes para se conseguir as notas necessárias para fazer uma escala” (consultável em: https://ia600506.us.archive.org/13/items/woodwindinstrume000787mbp/woodwindinstrume000787mbp.pdf)
Os instrumentos portugueses assemelham-se aos utilizados no outro lado da fronteira.  O tambor alentejano possui grandes dimensões como as de seus vizinhos, e tanto o pito rociero (Andaluzia) como a gaita alentejana costumam utilizar chifre na cabeça da flauta, revestindo o bico e o bisel, assim como cinzelados que emolduram os dois furos superiores do instrumento.

Félix, tamborileiro de Almonaster la Real (Huelva)

Félix, tamborileiro de Almonaster la Real (Huelva)

João Caçador, tamborileiro de Barrancos (baixo Alentejo)

João Caçador, tamborileiro de Barrancos (Baixo Alentejo)

Na década de 60, Ernesto Veiga de Oliveira Oliveira descreve as funções e práticas musicais do tamborileiro de Barrancos, nas festas de Santa Maria; em Santo Aleixo da Restauração, nas festas de Santo António e da Tomina; e em Vila Verde do Ficalho, na festa de Nossa Senhora das Pazes. Actualmente os tamborileiros acompanham os peditórios, percorrendo todas as casas, com os festeiros, que transportam o guião, e com o fogueteiro. O tamborileiro de Santo Aleixo ainda participa nas procissões de Santo António e na Nossa Senhora das Necessidades, encabeçando o cortejo. Os mais idosos recordam o tamborileiro como “o mestre-de-cerimónias”, que era consultado pelos festeiros por conhecer todas as fases do processo ritual, assim como os percursos pelas ruas das vilas.  Pelos temas gravados, no Arquivo Sonoro de Ernesto Veiga de Oliveira, que serviu de base à obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, os tamborileiros da década de 60 também tocavam a Alvorada na madrugada dos dias de festa (que foi substituída por bandas filarmónicas), e tocavam fandangos e corridinhos nos bailes dos arraiais. Como os temas executados por Romão Estradas, gravados em 1961, na Festa da Senhora das Pazes, em Vila Verde de Ficalho

Na década de 70 Michel Giacometti dedica o 6º episódio da série documental “O Povo que Canta” (emitido a 18 de Outubro de 1971) aos tamborileiros do Baixo Alentejo. O sexto episódio é um tributo a Ernesto Veiga de Oliveira, e foi realizado na zona fronteiriça dos concelhos de Serpa, Moura e Barrancos. Para o documentário foram gravados três tamborileiros (dois em Serpa e um Barrancos) e resgatado o som de um registo de Michel Giacometti, de 1965, em Santo Aleixo da Restauração, com o tamborileiro António Oliveira Lopes (1915-1984), conhecido por “Guinapo”. Giacometti entrevista o tamborileiro Bento José Romeu, de 65 anos, natural de Aldeia Nova de São Bento, vaqueiro no Monte de Belmeque (Vale de Vargos), que foi tamborileiro na Aldeia Nova de São Bento até à década de 50. Este tamborileiro, para além de acompanhar os cerimoniais religiosos tocava em festas, ditas profanas, como os bailes de Entrudo.

Em Barrancos o tamborileiro é designado por “Bibo” e a sua função está reduzida ao Peditório no dia de Santa Maria. Na tarde do dia 14 de Agosto percorre as ruas principais da vila anunciando com o seu toque o peditório que vai decorrer no dia seguinte. Ao longo do tempo o tamborileiro de Barrancos foi visitado e revisitado por antropólogos e etnomusicólogos. Em 1961, Ernesto Veiga de Oliveira gravou e fotografou o tamborileiro António Torrado. Nas fotos, publicadas na obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, o tamborileiro António Torrado estava acompanhado pelos Festeiros: António Marques, Carlos Durão, Carlos Ramos Nazaré, Domingos Fernandes Bossa e Manuel Venegas Gala (2000: 128-129). As gravações recolhidas fazem parte do Arquivo Sonoro que serviu de base ao livro, e foram convertidas para MP3 por Domingos Morais. No Arquivo Sonoro encontramos dois temas de António Torrado:

“Vivo da festa de Santa Maria, Alvorada”: http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo017.mp3
“Toque da Procissão”:http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo018.mp3

Em 2014, João Caçador (Beja,1999), músico na Banda Filarmónica Fim de Século de Barrancos, retomou o ritual do peditório, executando o toque: “Vivo da festa de Santa Maria” pelas ruas da vila. Em 2007 aprendeu a tocar flauta e tambor com Marco Cardoso, que por sua vez herdou a arte do tamborileiro José Ramón, já falecido. José Ramon foi gravado por Michel Giacometti para o documentário “Os tamborileiros do Baixo Alentejo”, que já referimos. No dia 15 de Agosto de 2014, do nascer ao pôr-do-sol acompanhámos e gravámos o tamborileiro João Caçador e os festeiros Alexandre Baleizão, Hélder Segão, Manuel Cortegano, Manuel Veríssimo e Sérgio Segão, que levaram o guião de Nossa Senhora da Conceição de casa em casa, recolhendo as dádivas dos barranquenhos.

Em Santo Aleixo da Restauração o tamborileiro está associado às festividades de Santo António e da Tomina, assim como aos peditórios de Santo António e Santa Maria, com uma função cerimonial que perdeu ao longo do tempo a sua componente musical. António Maria Cuco (1901-1976) foi o primeiro tamborileiro a ser gravado e fotografado por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira: “Recordo a visita à casa do tamborileiro António Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restauração, a sua extrema modéstia e esmero, de uma só divisão, com chão de xisto límpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a cozinha na superação rara dos sinais do fogo, a um dos lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo. Neste cenário da maior simplicidade destacava-se uma pequena arca de pinho que o António Maria abriu pondo a descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem precioso, o pífaro que agora integra esta colecção.” (Benjamim Pereira, em Instrumentos Musicais Populares Portugueses). O “Toque do tamborileiro” executado por António Maria Cuco faz parte da colecção dos Arquivos Sonoros: http://natura.di.uminho.pt/ARQEVO/d1/evo240.mp3
Na festa da Tomina de 2014 foi António Grilo (Santo Aleixo da Restauração 1975), neto de António Maria Cuco e filho do tamborileiro Joaquim Grilo (o Ficalheiro) que desempenhou, pela primeira vez, a função de tamborileiro, para manter a continuidade do ritual. Contudo, na memória dos mais idosos permanece o “toque do tamborileiro” do seu avô.

O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho perdeu algumas funções rituais, apesar de acompanhar o guião da Nossa Senhora das Pazes e S. Jorge no peditório para a Festa, a 15 de Agosto, e no agradecimento dos Santos à população, assinalando o início das festividades no fim-de-semana de Pascoela. O tamborileiro de 2014 foi o festeiro Francisco Galhoz (Santo Aleixo da Restauração, 1969), barbeiro de profissão e cantador no Grupo Coral “Os Arraianos de Ficalho”. Na infância acompanhava o ritual do tamborileiro de Santo Aleixo, que incorporou como prática musical e performativa.  Como membro de diversas comissões de festas assumiu a função de tamborileiro, de improviso, realizando um sonho de criança. Mas, os mais idosos recordam os atributos dos antigos tamborileiros, e não reconhecem qualidades nos jovens que asseguram a continuidade de uma prática ritual com significado.

O património sonoro e musical registado por Ernesto Veiga de Oliveira e Michel Giacometti está práticamente extinto no Baixo Alentejo. Em Trás-os-Montes, nas Terras de Miranda, o duo flauta e tamboril vai ser padronizado. Segundo os agentes culturais envolvidos, o processo de “padronização” vai permitir a sua divulgação e utilização por novos músicos, para que esta prática musical, “ligada à pastorícia transmontana não se perca”: http://www.publico.pt/local-porto/jornal/flauta-e-tamboril-nordestinos-vao-ser-padronizados-27596891

Os processos de padronização de instrumentos tradicionais, ou de patrimonialização de práticas culturais, estão directamente relacionados com o movimento de revivificação da música de matriz rural, iniciado na década de 90 por agentes urbanos que reivindicam valores populares. Josep Martí (1996) designou este fenómeno sociocultural de “folklorismo”, de instrumentalização da tradição, considerando as suas finalidades basicamente de tipo estético, ideológico e comercial (Martí 1996: 19). Nas povoações raianas do Baixo Alentejo o tamborileiro permanece, inserido em contextos festivos e cerimoniais com sentido e significado para as populações locais. No entanto, à excepção do tamborileiro de Barrancos, que reproduz o toque “vivo da festa de Santa Maria” transmitido de geração em geração, os tamborileiros observados em Santo Aleixo da Restauração e em Vila Verde de Ficalho representam uma figura simbólica, que permanece na memória colectiva como herança cultural das populações raianas.

João Caçador, tamborileiro de Barrancos, 2014.

João Caçador, tamborileiro de Barrancos, 2014.

 

Francisco Galhoz, tamborileiro de Vila Verde de Ficalho, 2014.

Francisco Galhoz, tamborileiro de Vila Verde de Ficalho, 2014.

 

Francisco Galhoz, tamborileiro de Vila Verde de Ficalho, 2014

António Grilo, tamborileiro de Santo Aleixo da Restauração, 2014.

 

Una romería transfronteriza en Rosal de la Frontera (Huelva)

Las relaciones en la frontera hispano-portuguesa fueran construidas al largo del proceso histórico, ancladas en interdependencias económicas, relaciones de parentesco y de amistad. En un catalogo turístico de la Junta de Andalucía podemos leer: “el carácter fronterizo de Rosal de la Frontera ha posibilitado una cierta identidad social y cultural con Portugal, cuya influencia se puede palpar en cada uno de los rincones de este tranquilo municipio”. En la actualidad, las relaciones fronterizas son mantenidas y re-significadas “desde arriba”, por intervención del poder político (local y supralocal), y “desde abajo”, por la interacción social entre las populaciones rayanas. En una zona rural desertificada de personas, las festividades y prácticas rituales fortalecen simbólicamente la continuidad de las relaciones entre los pueblos de Rosal e Vila Verde de Ficalho. La Romería de San Isidro Labrador, la más importante fiesta celebrada en Rosal de la Frontera, es una romería de carácter transfronterizo, invitando a la participación de la Comisión de Fiestas de Nuestra Señora das Pazes, de Vila Verde de Ficalho. Las relaciones entre los dos santos reflejan, simbólicamente, las relaciones de amistad entre dos pueblos vecinos, justificadas en diversas narrativas.

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Romería transfronteriza – Romería San Isidro El Labrador (2014)

El santo patrón, San Isidro, cuyo nombre era Isidro de Merlo y Quintana, nació en torno al 1082 en Madrid, durante el reinado de Alfonso VI, y falleció en el año 1130. Sus padres eran de clase humilde, y una de las primeras ocupaciones de Isidro fue la de pocero, o sea, cavar pozos, al servicio de la familia Vera, hasta que se trasladó a trabajar a Torrelaguna, donde contrajo matrimonio con María Toribia. Fruto de su matrimonio tuvieron un hijo llamado Illán. Al cabo de unos años la familia regresó a Madrid, para cuidar las tierras de la familia Vargas. En ese momento, cuando Isidro realizó las tareas de labrador, pasa a ser conocido popularmente como “Isidro labrador”. Las narrativas populares dicen que la providencia hacía que su cosecha siempre fuera muy grande, y que compartía lo que tenía con los hombres, las aves y otros animales. Debido a su labor, se le considera patrono de los que trabajan la tierra, siendo venerado en varios pueblos de España y América latina, con procesiones en las que se bendicen los campos. En Andalucía, Extremadura y Castilla-La Mancha se hacen romerías en honor al Santo, acompañado de carretas, caballos, carrozas y muchos romeros, como en Rosal de la Frontera. La fiesta, con sus rituales refuerza la identidad cultural de los rosaleños, siendo transmitida a las generaciones futuras.

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El sábado 17 de mayo los tamborileros “Los Bravo” condujeron la alegre diana por las calles rosaleñas, la Hermandad y los Mayordomos entrantes, los Hermanos “Charca. Posteriormente la Comisión de Fiestas de Nuestra Señora Das Paces y San Jorge (Vila Verde de Ficalho) fue recibida junto a la frontera, invitada a integrar el proceso ritual de la fiesta. En la iglesia, el Coro Romero dedicó un canto a la unión entre los dos pueblos, y en la calle se hicieron muchas saludaciones a los dos santos. La romería se celebra junto a la ribera del Alcalaboza, a unos ocho kilómetros del pueblo de Rosal, en dirección a Huelva. Allí se encuentra la Ermita de San Isidro y las casetas arregladas de acuerdo con la condición social de sus propietarios. La romería está integrada en el Plan Romero de la Junta de Andalucía, que garantiza la seguridad y el control del tráfico en la carretera. El programa de fiestas del domingo 18 de mayo, empezó con la Diana Romera interpretada por los tamborileros “Los Bravo”. Tras la misa romera, oficiada por el párroco polaco Tomász Paluch, y cantada por el Coro Romero, los Mayordomos, conocidos cariñosamente en el pueblo como “Los Charcas”: Manuel, Gloria, Mª Luisa y Carmen Romero, ofrecieron una comida a todos los participantes y visitantes, en la Casa de la Hermandad. Por la tarde, en torno a las 20.00 horas, se realizó la procesión sin párroco, del Santo Rosario en el recinto, con ofrendas florales y cantares a San Isidro. La romería proporciona un espacio e un tiempo de expresión y exaltación cultural, de reencuentro, compartido con familiares y amigos. La música y la danza están presentes en todos los rituales de la fiesta, y emergen con espontaneidad en el proceso de interacción social. Las voces del Coro Romero San Isidro acompañan la celebración de rituales religiosos. Los tamborileros conducen los desfiles ceremoniales, pero también están presentes en los momentos más lúdicos de la fiesta. Las dinámicas musicales de las gentes de todas las edades, añaden al ambiente festivo con sus tambores, cañas, panderetas, el cuerpo y la voz, cantando y bailando fandangos y sevillanas.

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El cante y el baile – Romería de San Isidro El Labrador (2014)

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Más allá del programa religioso-popular de la romería, fuimos testigos de un baptismo, en la ribera del Alcalaboza, muy característico de la romería de Rocío. En este ceremonial, paródico, Juan Antonio Fuentes, nacido en Huelva en 1962, fue simbólicamente integrado en la comunidad romera rosaleña, a que pertenece su mujer, María Isabel. El matrimonio tiene dos hijas, y viven en Huelva, aunque Isabel conserve su casa en Rosal. Las fiestas sirven para la reunión familiar, para compartir identidades e momentos lúdicos, repletos de afectos y significados.

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Baptismo en la Romería de San Isidro El Labrador (2014)

 

O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)

O tamborileiro existe desde tempos remotos, nos mais diversos países e regiões. A sua função festiva perdura  em várias zonas da Espanha (Extremadura e Andalucía) e da França. Em Portugal, o tamborileiro permanece em duas zonas fronteiriças distintas: nas aldeias raianas do distrito de Miranda do Douro (Trás-os-Montes) e do distrito de Beja (Baixo Alentejo). O tamboril e a flauta, tocados pelo tamborileiro, formam um conjunto instrumental unitário e coerente, bastante raro na década de 60, quando Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira organizaram a colecção de instrumentos populares portugueses. No trabalho de pesquisa encontraram tamborileiros nas aldeias raianas de Terras de Miranda, com funções de carácter cerimonial, profanas e lúdicas, e nas aldeias raianas do Baixo Alentejo, com funções cerimoniais em festas religiosas patronais e ritualizadas (em Instrumentos Musicais Populares Portugueses, p.259). Na década de 70 Michel Giacometti revisitou os tamborileiros alentejanos de Vila Verde de Ficalho, Santo Aleixo da Restauração e Barrancos, anotando: “o tamborileiro pode ser definido como um instrumentista popular que toca simultaneamente um tamboril e uma flauta, estando a melodia a cargo da flauta e sendo o acompanhamento executado no tamboril com uma única baqueta” (guião do documentário “O Povo que Canta” 6.º episódio, dedicado aos tamborileiros do Baixo Alentejo, emitido na RTP a 18 de Outubro de 1971 (em http://www.michelgiacometti.com/pdf/volume_2.pdf).

Em Vila Verde de Ficalho  o tamborileiro participa no peditório para a Festa da Senhora das Pazes, a 15 de Agosto, acompanhando os Festeiros que transportam o Guião, percorrendo as ruas da vila.

tamborileiro de Ficalho, 2013 peditório de santa Maria

No dia da festa, pela manhã, o tamborileiro tocava a “Alvorada”, alternando o seu toque com a música da banda filarmónica convidada para abrilhantar as festividades. De tarde, o tamborileiro acompanhava a procissão ao lado do Guião e atrás da cruz. Na obra Monografia de Vila Verde de Ficalho, Francisco Valente Machado escreveu: “o tamboril, de som monótono mas bem conhecido, era tocado, simultaneamente com a respectiva gaita, por ocasião da Festa das Pazes, ao acompanhar o guião nas cerimónias, como nos momentos em que ele parecia em público durante os peditórios que todos os anos se fazem a favor da mesma festa. Deixou fama, como tamborileiro, o velho Lança a quem sucedeu o seu filho, César Lança, que também foi bom, mas sem ter igualado os merecimentos paternos neste domínio” (p. 288).  Em Ficalho o tamborileiro tinha uma função cerimonial e lúdica, como testemunham os temas musicais “Alvorada”, “Procissão” e “Corridinho” gravados em 1961. Cada tema correspondia a diferentes momentos da sua participação na Festa, com  uma fórmula ritual diferenciada da música tradicional da região. Nos arquivos sonoros de Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira (em: http://alfarrabio.di.uminho.pt/arqevo/arqetnoevo.html), encontramos registos destes temas interpretados pelos tamborileiros Romão Estadas e Manuel José Celeiro, gravados na Festa da Senhora das Pazes de 1961.

O tamborileiro em Vila Verde de Ficalho perdeu algumas funções rituais, mas continua a acompanhar o Guião da Senhora das Pazes e S. Jorge no peditório, e no agradecimento dos Santos à população, assinalando o início das festividades no fim-de-semana de Pascoela.

O tamborileiro de 2014 foi o festeiro Francisco Galhoz, nascido em Santo Aleixo da Restauração em 1969. Na infância acompanhava o ritual do tamborileiro de Santo Aleixo, que incorporou como prática musical e performativa. Em 1991 fixou-se em Vila Verde de Ficalho, terra natal da mãe, e aí casou e construiu a sua vida. Ao longo dos anos desempenhou diversas atividades, atualmente é barbeiro de profissão e faz parte do Grupo Coral “Os Arraianos de Ficalho”. Como membro de diversas comissões de festas assumiu a função de tamborileiro, de improviso, realizando um sonho de criança. Os mais idosos recordam os atributos dos antigos tamborileiros, e não reconhecem qualidades nos jovens que, de forma espontânea, asseguram a continuidade de uma prática ritual com significado.

 

 

Uma festa transfronteiriça em Vila Verde de Ficalho (Baixo Alentejo)

A Festa da Senhora das Pazes remonta historicamente ao séc. XVIII, segundo o estudioso local Francisco Valente Machado, que atribui a iniciativa à 2ª Condessa de Ficalho, na sequência de uma contenda entre os seus filhos e os fidalgos de Aroche. A Ermida da Senhora das Pazes está identificada como arquitectura religiosa do séc. XVI, manuelina, barroca, popular, lugar de peregrinação característica da popularização dos modelos manuelinos. A construção e localização junto ao rio Chança, que delimita a fronteira luso-espanhola, é justificada na “Lenda da Nossa Senhora das Pazes” que permanece na memória colectiva: “no tempo da guerra de Espanha com Portugal, houve uma grande batalha em Ficalho e durante a batalha apareceu uma Santa no cimo de uma azinheira e acabou com a guerra. Então nesse sítio foi construída uma capela a capela da Nossa Senhora das Pazes. Ainda hoje é a padroeira da povoação e a capela está localizada no lugar onde supostamente apareceu a Santa”.

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A história da Senhora das Pazes cristaliza-se num mito fundador da comunidade fronteiriça de Vila Verde de Ficalho. Para o antropólogo William Kavanagh, “las fronteras constituyen espacios – y lugares – de producción cultural, donde se crean, y a la vez se destruyen, diversos significados. La frontera no es una entidad estática, sino que es algo que constantemente se construye (y reconstruye) de diversas maneras” (Kavanagh et al, 2009: 153). As festividades servem para reconstruir e resignificar o lugar da fronteira, desarticulado pelas transformações no mundo rural, pelos  fluxos migratórios e pela abolição das linhas divisórias, renovando profundas e duradouras continuidades culturais. A aparição de uma figura sobrenatural, que intervém simbolicamente na vida das comunidades de Ficalho e Rosal de la Frontera, permite a incorporação de valores transmitidos oralmente, de geração em geração, por meio da memória colectiva e de práticas rituais e performativas. Os rituais e símbolos festivos dão sentido e significado à vida das pessoas, perpetuando e reativando ciclicamente o relato histórico do qual são o reflexo.

A Festa é organizada por uma Comissão, composta por pessoas de diferentes géneros e idades, nomeados pelos festeiros cessantes, entre os quais se distribuem tarefas e responsabilidades de acordo com as suas competências. Ao grupo da Comissão de Festas compete assegurar a continuidade de uma tradição religiosa-popular, por meio de diversas iniciativas, ao longo do ano, que permitam custear o evento. A romaria e o arraial que se realizavam, outrora, na segunda-feira de Pascoela, exigiram uma recalendarização ajustada à realidade de uma comunidade migrada.  A festa religiosa e popular no campo, em torno da Ermida, reúne um conjunto de símbolos e rituais que reforçam as relações de vizinhança. A música e a dança estão presentes no arraial, como expressão da cultura popular de ambos os lados da fronteira, como as sevillanas entoadas de improviso pelos vizinhos de Rosal de la Frontera.

Como nos diz John Blacking, (1979) a música e a dança encontram nas festas o tempo e o espaço privilegiado para a “invenção e reinvenção da cultura através da interacção social”, como campo criador de significados. O cante alentejano, as sevillanas, o rebombar dos bombos, e as modas para bailar interpretadas por um grupo de música tradicional de Vale de Vargo, são modelos de transmissão e construção identitária que encontramos nesta festa transfronteiriça.